segunda-feira, maio 31, 2004

A IMACULADA ANGLO-CONCEPÇÃO


É um artigo de opinião interessante, não tanto pelo rigor ou imparcialidade da análise (fenómeno cada vez mais raro nos tempos que correm), mas precisamente pelo seu contrário: a parcialidade da dita. Uma parcialidade, de resto, muito típica a um certo "pensamento de direita" a que eu chamaria "anglo-saxónico". Ou "direita peregrina", se preferirem.
O autor, um tal George Watson, concentra-se no século XX e afadiga-se de roda das seguintes teses essenciais:
a) O genocídio é património da esquerda;
b) O genocídio é património do século XX.
Para alcançar este monumental desiderato, o George gasta grande parte da exposição na tentativa de provar que o Nazismo, afinal, é de esquerda, velada derivação marxista, genuína cavalaria utópica. Vale a pena acompanhá-lo nesta aventura. O início da arenga é, até, prometedor e não totalmente absurdo. Diz ele:
«The Left is perceived as kind and caring, despite its extensive history of promoting genocide.
When it comes to handing out blame, it is widely assumed that the Right is wicked and the Left incompetent. Or rather, you sometimes begin to feel, any given policy must have been Right if it was wicked, Left if it was incompetent

Quando ao que o George sustenta, nada como ler o artigo e cada qual tirar as suas conclusões. Quanto ao que, em contrapartida, a história conta, não restam quaisquer dúvidas que o genocídio não é património exclusivo de nenhuma política, época, regime ou, tão pouco, geografia. Antes fosse. Isso, no mínimo, significaria que passado esse regime e essa época estaríamos livres da coisa. Infelizmente, a regra não é essa. Na verdade, em termos antropológicos, o genocídio é património da Humanidade (um dos mais negros e recorrentes) e nomadiza por todas as regiões e épocas. Mas não é património exclusivo: Deus e a natureza precederam-na e acompanham-na, ainda hoje, nisso.
Contudo, também não são essas evidências macabras o que, por agora, nos interessa. Prefiro aceitar a tese peregrina do George Watson e, pressupondo-a válida, tentar abordá-la sob dois aspectos distintos:
Em primeiro lugar, pela sua motivação; em segundo, por aquilo que nos revela.
Quanto à motivação, é óbvia: a direita peregrina (anglo-saxónica) pretende fazer coincidir o termo "direita" com religião capitalista. Quer dizer, ser de direita equivale a aceitar o dogma capitalista no seu esplendor inefável e nos seus efeitos práticos permanentes e determinantes: a supremacia indiscutível do primado económico sobre o primado político e a ostracização de qualquer primado ético. Daí que toda e qualquer crítica ou mera fonte de dúvida sobre o capitalismo, congreguem as fúrias e rancores desta gente e sejam de pronto precipitadas nos abismos da demonização e do mal absoluto. É para esse tragadouro que, nesta perspectiva fundamentalista, resvala cada vez mais a esquerda, bem como toda e qualquer crítica ou heterodoxia, de roldão e rojo, junto com ela. Para esta "direita peregrina", Hitler já é marxista, e qualquer tipo que não se prostre, de ventas ao chão, cú pró céu e chulé desarvorado, em adoração à Nova-Meca, não passa dum perigoso comunista ou monstruosidade associada.
Quanto ao que revela, a excursionista tese do Watson, ainda é mais esclarecedor.
Aceitemos então que o genocídio é património exclusivo da esquerda, agremiando esta todas as demandas utópicas que contrariem o realismo capitalista. (Não esquecer, entretanto, que, segundo estes novos categóricos, toda e qualquer não-resignação deverá ser considerada utópica).
Pois bem, os "utópicos", na sua correria acelerada ao mundo redimido prescindem duma série de gente, que consideram, sob diversos títulos, absolutamente excedentária e descartável. No caso Nazi, por exemplo, tratar-se-iam, essencialmente, de hordas sub-humanas, escravas ou deficientes. Na sua concepção singular de mundo, esse tipo de sub-pessoas não cabia. Ao contrário da concepção capitalista, da direita peregrina, sobretudo pragmática, onde esse género é não só bem-vindo como indispensável.
Não esquecendo, já agora, uma outra nuance deveras bizarra e não menos significativa: no complexo sistema conceptual desta malta imaculada, só conta para o campeonato do genocídio a mortandade premeditada e organizada a tiro, a gaz, à bomba ou por qualquer desses sortilégios espectaculares, com entrada directa e garantida para o top dos telejornais. Sem dúvida: Tratar dessa rude maneira as pessoas (ditas sub-pessoas), é que é genocídio. Já envenená-las, fria e paulatinamente, física e espiritualmente, ou deixá-las morrer à fome, não conta.

3 comentários:

Manuel disse...

Quanto ao genocídio, eu não me canso de incitar à leitura do "Livro de Josué".
Ajuda a perceber muitas coisas, mesmo de hoje.
E também as colonizações anglo-saxónicas, da América do Norte, da Austrália ou da Tasmânia, notoriamente orientadas por messianismos de tipo vetero-testamentário.
Na mentalidade do velho testamento, quem tomava conta da terra prometida não pretendia converter os seus habitantes; queria a terra vazia, toda para si, como Deus a prometera, esvaziando-a de todos os que a ocupavam, contra os planos divinos.
Se necessário deviam exterminar-se até os animais domésticos...

Roberto Iza Valdés disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

Best wishes