segunda-feira, fevereiro 28, 2005

Uma Questão de Higiene

É verdade, ó leitores, ó masoquistas: este blogue tem censura. Prova cabal disso é o texto que se segue: esteve censurado nos últimos dois meses. Eu próprio, acreditem, o achei excessivo. Iconoclasta para lá das marcas. Prosa digna daquele mongol que se divertia e despenhar elefantes. Era mesmo suposto aplicar-lhe a utilíssima tecla “delete”.
Porém, como não me deixam descansar em paz, decidi vingar-me duma horda ruidosa que não me larga a porta e reclama pérolas a toda a hora. Ai querem pérolas?... Então aí vão!...



Volto a este assunto. Se vos desgosta, tanto melhor. Mas não consigo deixar de pensar em tão crucial temática:
Há qualquer coisa de flagrantemente promíscuo entre grande parte da “literatura” que se edita nestes dias e o papel higiénico. A cada dia que passa, a evidência, de resto, aumenta: ler tornou-se uma forma sofisticada (ou meramente complementar) de ir ao cabeleireiro. Ou à retrete. Não será por acaso.
Desde sempre, o burguês luzidio e bem tratado, filisteu atávico que refocila todo pimpão em chiqueiros egonáuticos, recorre aos livros como parte essencial da decoração doméstica: enquadra-os com reposteiros e mobílias, afina-os por tapeçarias e bibelôs. Aprecia-os, sobretudo, sob o ponto de vista da encadernação. Isso e o “bom tom”. Os clássicos são de bom tom numa sala ou escritório. Casos há também em que não é, de todo, a decoração doméstica que o norteia: nesse caso, é a indumentária.
Eu, tenham lá paciência, mas aos livros devoto ritual diverso. Há aqueles que leio e aqueles que não. Os que leio aprecio-os pelo que trazem escrito no papel; os outros, pela macieza e capacidade absorvente deste.
Por exemplo, uma Agustina Bessa-Luís ou António Lobo Antunes, por incrível que vos pareça, variam muito. Há edições mais macias que outras. Há edições absolutamente agressivas para a pele, que arranham e desbotam, mal entram em contacto com a superfície a cuidar. O mesmo se pode dizer em relação a uma Lídia Jorge. Já um Saramago não padece dessas flutuações: oferece-se-nos em papel standard, sem oscilações, bastante dúctil e aderente. A sua capacidade escato-pregnante é notável. Não tanto, é certo, como uma Agustina, nem, longe disso, como um Lobo-Antunes; mas, ainda assim, bastante aceitável.
Lobo-Antunes, de resto, só por si, seria merecedor de uma monografia. Retrete que não disponibilize ao celebrante, em suporte dourado apenso, uma das suas obras, proscrevei-a de imediato, a vermelho, na vossa agenda. Livrai-vos de cagar em tal antro: é gente analfabeta –ou pior: analfabrava – de certeza absoluta. Inventai uma desculpa, um pretexto inadiável, e escafedei-vos de lá o quanto antes. Se não são canibais, são antropófagos - burgueses de merda, enfim.
A mim, quando eventualmente algum dos raros casais amigos –gente intrépida – me convidam para ir, de senhora Dragão à ilharga, jantar lá a casa, mais que o menu, nunca se esquecem de me dizer: “e temos lá a última edição do Lobo-Antunes, em edição especial, papel couché .” Além do mais, nestes saraus, tanto como o que vamos passar pela boca importa que acautelemos o que vamos abeirar do posterior orifício. Eles, os anfitriões destemidos, conhecem-me bem, de ginjeira, e sabem que doutra maneira dificilmente me apanhariam lá. Assim, é infalível. Ou melhor: é quase impossível resistir. Peroro á senhora Dragão e lá vamos. Depois, findo o repasto, passado pelas mandíbulas o bacalhau ou a picanha, o tinto, varrida a sobremesa, emborcado o puro malte, chega o momento (por todos) ansiado... Levanto-me e profiro, não sem uma certa solenidade: “Bem, agora, com vossa licença, vou ver que tal está o Lobo-Antunes!” E lá ficam, eles todos, a aguardar-me, impacientes, sequiosos da opinião do expert. Quando regresso, aliviado, ainda a dar o último retoque no cinto das calças, já todos me bombardeiam: “Então?! Então que tal?!”
E não raras vezes, senão por sinceridade, ao menos por cortesia, respondo: “Supimpa! O melhor Lobo Antunes dos últimos tempos. Até me assoei!...”

Entretanto, acabo de saber que vai ser editada mais uma obra de Agustina Bessa-Luís, com prefácio de Clara Ferreira Alves. Fico ansioso. Mas também preocupado. Se o romance estiver ao nível do prefácio, arriscamo-nos a deparar com um típico papel de jornal, duma flacidez exacerbada, com tendência para manchar aquilo que, estando já sujo, conviria antes que limpasse. Duvido que alguém no seu perfeito juízo, se atreva a desenporcalhar-se com tal compêndio de bacoquices.
Mas não julguem que apenas as obras nacionais usufruem destes méritos. O rol internacional é ainda mais luxuriante. Marguerite Yourcenar, por exemplo, tem edições esplêndidas –quem nunca experimentou umas “Memórias de Adriano”, em quarta edição, ou “A obra ao Negro”, da Quixote, não sabe o que é uma higiene de qualidade; e Jean Paul-Sartre, Hemingway, Durrel, Kundera e tantos outros são do melhor que alguma vez poderemos encontrar à cabeceira da retrete. A Virgínia Wolf nunca experimentei, mas, não sei porquê, palpita-me que não anda muito longe da textura duma Gata Cristhie.
Quanto à maioria do que para aí se edita e vende, do que se anuncia em promoção nas montras e catálogos, perdoem-me o cepticismo (ou a exigência), mas, acreditem-me: Não serve nem para ler, nem, tão pouco, para limpar o cu. É lixo tóxico puro!... Repassado pelos olhos da frente ou pelo de trás, pode resultar em cauterizações insanáveis! E, como se tudo isso não bastasse, junta o inútil ao desagradável: Nem as pestanas resistem, nem os pintelhos do cu batem palmas!...
Vão por mim: pode ser que se combata o fogo com o fogo; mas, decerto, não se limpam resquícios de caca com defluxos de outra caca pior ainda. Tem que ser, pelo menos, igual.

sábado, fevereiro 26, 2005

A Ursada

«Dos muitos ursos, em castelhano “ossos”, tirou daquela serra o nome de Ossa. Embrenhados por cegos matagais, estavam os frades cuidando em formarem choças das ramarias, quando o rei, aporfiado inimigo deles, à conta de lhe aliciarem o sobrinho para a ordem capucha, os mandou desentranharem-se dos bosques e sair do reino.
Se há lance digno de pincel que obedecesse a dois impulsos grandiosos –génio e piedade – é este:
Ajuntaram-se os frades e desceram do viso da serra, despedindo-se lagrimosos das penhas e árvores em que tinham passado alguns dias e noites de oração. Ao compasso que iam descendo, saíam de suas furnas os ursos e paravam a vê-los passar.
Os frades iam cruzando grandes bênçãos sobre os ursos, e as feras inclinavam as suas cabeças compadecidas diante dos pobres desterrados.
Ó ursos mais católicos do que o próprio papa, ó honrados ursos, se ainda hoje a vossa posteridade florescesse na serra de Ossa, quantos homens de bem iriam demandar a vossa convivência! Quantos eleitores vos dariam o seu voto! Que esperanças não teria ainda Portugal de se ver regenerado por um ministério de ursos da vossa casta! Lá os tenho visto, apanhados nos matos do parlamento; mas, justiça vos seja feita, da vossa linhagem não eram!»

- Camilo Castelo Branco, “Cavar em Ruínas”

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Please do not disturb



Ah-Amh!...

Respeitinho é bonito e eu gosto.

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

Mais Antologia.

Estamos em maré antológica, aqui no blogue. Como não tenho ,agora, muito tempo para vos aturar nem deslumbrar com as merdas que aqui vou postalando~, sobretudo aqueles assuntos escandalosos que tanto vos excitam, fico-me por um replay de coisas que mereceram, num passado remoto, a vossa olímpica (como diria o Dodo -vê lá se escreves, ó morcão!) indiferença. É a sina da arte. De qualquer modo, ou é isto, ou fecho o estaminé. Escolham.

«O G.A.N.D.U.L.O - 1ªReunião, Fase 5

Esta coisa do D.Afonso Henriques andar ao leme do Batnavó, apesar do cutelo, não tem só desvantagens. Não, também tem algumas contrapartidas. A tasca -aliás, Ciber-tasca-, por exemplo, parece ter viajado no tempo, sendo que eu e o Dinossauro fomos armados cavaleiros e o Caguinchas agora é conde. Já o Armindo Taberneiro, que D.Afonso não vê com tão bons olhos, manteve-se plebeu, mas com o alvará, por concessão régia, de armeiro-real e Guardião-das-armas. Estas, as armas, resumem-se por enquanto ao cutelo, mas D.Afonso já lançou olhares gulosos ao martelo de picar carnes, que o Armindo tratou de esconder como pôde. Foi, pois, nestas qualidades aristocráticas que prosseguimos com a reunião.Tomou a palavra o Conde Caguinchas, coisa que, em condições normais nós teríamos evitado a todo o custo, mas que, dada a nova hierarquia social, se tornava impossível, já que sendo ele Conde e nós apenas cavaleiros não caíria bem, aos olhos do Rei, mandar calar um superior.
Para não variar, e apesar de ímbuido doravante de sangue azul, no usufruto dum Condado ali prás bandas de Alcains, o Caguinchas, emborcou o lenitivo da ordem e, sem mais aquecimentos nem avisos, descarregou um chorrilho de alarvidades e contra-sensos, capazes de fazer babar de inveja um estivador bezano em fase quadrupédica.
Eis a súmula (traduzida e seleccionada):
O Caguinchas -aliás, Conde Caguinchas-, tinha descoberto onde se acoitava Bin Laden, o famigerado terrorista. Por uma feliz coincidência, associada a poderes dedutivos invulgares, topara o vilão mais o respectivo covil. Onde satélites, agências, exércitos haviam falhado, o Caguinchas, agora Conde, reclamava vitória. E o mais extraordinário é que o dito facínora, o génio maligno, encontrava-se em Portugal, ou mais precisamente, com toda a exactidão domiciliar, na Rua Morais Soares, nºx, 3º Dtº, à Praça do Chile - Lisboa. Se acrescentarmos o código postal: 1900 Lisboa e o telefone: 2184*****, fica o serviço completo e o banzamento colectivo. Mas o detalhes não ficavam por aqui. Bastava ler o anúncio, que o Conde Caguinchas apresentava como prova eloquente e definitiva:
ASTRÓLOGO * ESPIRITUALISTA * CIENTISTA
MESTRE BAIO
Grande cientista, espiritualista e curandeiro. Descendente de uma antiga e rica família com poderes de magias negra e branca, feitiços dos impérios do mal: Senegal, Gâmbia, Guiné-Conacri. Coordenador dos (Impérios do mal), mesmo ao longo de muitos anos, conhecedor de casos desesperados, ajuda e aconselha qualquer problema, grande ou de difícil solução, com rapidez e sabedoria, em curtos prazos (...) Faz trabalhos à distância. Conhecido por toda a Europa e África., bla-bla-bla e por aí fora..." (o que se seguia não tem muito interesse pois não era citado como matéria de prova.)
-"Este gajo é o Bin Laden! - Garantia o Caguinchas, com a autoridade toda dum conde. - Um raio me parta, se não é! Não, vejam!, vejam com atenção!...'Tá tudo aqui escarrapachado: "Coordenador dos Impérios do mal e trabalha à distância"...É o gajo! Só pode ser mesmo o gajo! chapado e escarrado!...E agora compreende-se com'é qu'aquilo foi feito, os aviões contra as torres e aquele buraco misterioso no Pentágono: Foi magia! Pura magia!...Negra e branca, diz aqui, foda-se!, o gajo é perito nas duas!..."
Mesmo que quisessemos contrapor alguma coisa, o protocolo hierárquico e o olhar severo de D.Afonso Henriques não no-lo permitiriam. Via-se que ele tinha pelo Conde Caguinchas a maior das considerações. De resto, por muito que nos custasse, havia algumas evidências corroborantes, como a questão da coordenação maligna e o trabalho à distância.
Optámos, pois, e a bem da nossa longevidade, por concordar e até rasgar corteses elogios à bela (se bem que rilhafolesca) teoria:-"Com efeito, Vossa Senhoria!...De facto! Quem diria? Esse energúmeno entre nós!...Mas também, como dizia o poeta, isto não é um país: é um sítio mal frequentado!...Que clarividência a vossa, Conde Caguinchas!..."
Estávamos entretidos nisto, quando, por via da cusquisse proverbial de certos bairros de Lisboa, atraída por rumores e boatos excepcionalmente fundados, eis que desemboca na tasca a respectiva do Batnavó, com uma destas fussas de megera assanhada que só visto, salvo seja, porque nós de a vermos até nos arrepiámos todos e preparámo-nos pró pior.Vou-vos poupar ao estardalhaço e despautério matrimonial com que a criatura nos brindou e ao marido arredio em especial. Digo-vos que é peixeira num certo mercado e ficamos por aqui. Mas o pior mesmo foi quando D.Afonso Henriques, sem perceber muito bem todo aquele escabeche, teve a triste ideia de se virar para o Conde Caguinchas e perguntar:
-"Quem é esta plebeia? Que reclama ela?...De que afronta se queixa?...Algum mouro ou castelhano que a violou?!..."
E mais triste ainda foi a resposta que o Caguinchas, feito Conde, teve a infelicidade de lhe dar (nós ainda acenámos, discreta e desesperadamente; mas em vão):
-"É Dona Urraca, vossa esposa, meu senhor!..."
Das duas uma: ou D.Afonso Henriques não reconheceu a esposa; ou tinha contas antigas a saldar. Agora imaginem nove séculos de juros em atraso...»

-in "Dragoscópio", algures nos primórdios.

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

Para bom entendedor...

Tratam-vos como gado; andam a engordar-vos... Se eu fosse a vocês, desconfiava.

terça-feira, fevereiro 01, 2005

Lipo-Conspiração?...


Íamos os dois, eu mais o Caguinchas, pela rua acima, com o frio a serrar-nos as orelhas. Seguíamos, como deveis calcular, em peregrinação devota a um bordel, coisa fina, coisa de classe, que um qualquer safardana das relações dele lhe havia apregoado como vaza-testículos do outro-mundo.
-"Ó Dragão, aquilo, disse-me o gajo, nem é mudar o óleo: é subir ao sétimo céu!..." – Bradara-me o Caguinchas, excitado, quase a babar-se, meia hora antes.
Envolto num tal chantilly metafísico, de fenómeno transcendente, lá acedi em acompanhá-lo ao interessante estabelecimento, não sem que antes ele me garantisse e jurasse a pés juntos, por alma da mãe, pelo menos umas vinte vezes, que o tabernáculo estaria apinhado de beldades exóticas, cada qual mais formidável que a anterior. Mas não julguem que me ia entregar ao deboche e ao adultério. Não; desta vez não. Desta vez eu era só mais um peão numa estratégia que seria maquiavélica, se não fosse Caguinchiana.
De facto, o Caguinchas engendrara um plano, um plano caviloso e mirabolante. Não sei que idílios putafágicos o outro lhe pintara, que delícias e volúpias estonteantes lhe descrevera. O que é certo é que ele, incendiado nos apetites, metera na cabeça uma daquelas ideias estapafúrdias que traz sempre engatilhadas e prontas para abater, sem dó nem piedade, qualquer esboço de sensatez. Esta não perdia para nenhuma das precedentes. Resumia-se ao seguinte: desta vez, nada de petiscos; destas vez tinha que ser um banquete. Traduzindo: o Caguinchas, assaltado por megalomania fornicadora, não se contentaria com uma das funcionárias: tinha que as comer a todas. E em simultâneo. Em suma: Cismara de açambarcar as putas.
De caminho, para melhor me convencer a secundá-lo e a assessorá-lo na empresa, ia apresentando razões eloquentes para o seu desvairado projecto de monopólio sexual:
-" Um gajo, ó Dragão, tem que mergulhar num mar de mulheres, pelo menos uma vez na vida. Senão não vai daqui baptizado..."
Para que aquele golfinho de bordel não encalhasse irrecuperavelmente nos baixios da heresia, eu contrabalancei com uma ondulação ligeiramente mais filosófica:
-"E há quem sustente, ó Caguinchas, que quem dominar as putas, dominará o mundo!"
-"Dominasse eu as putas e queria lá saber do mundo!..." –Atalhou ele, entre o alucinado e o visionário, qualquer um deles a transbordar de sinceridade.
Percebi que já nenhuma força humana poderia pará-lo. O destino servia-se dele e ele, insuflado pelo Destino, ardia por se servir das putas.
Lá fomos. Ou melhor, lá íamos, como eu principiei por dizer. Faltará talvez acrescentar, a bem da literatura, que palmilhava ele o empedrado tipicamente luso da calçada vestido de Sheik Árabe (pelo menos, ia convencido disso) e acompanhava-o eu mascarado de intérprete. Na complexa, mas todavia singela, lógica do Caguinchas, essa era, sem dúvida, a forma de melhor açambarcar as putas sem contradição. Em primeiro lugar, porque os árabes funcionam ancestralmente com haréns, ninguém lhes estranha por isso o capricho; e em segundo lugar, razão de ser do primeiro, porque são podres de ricos. A pretexto do harém, explicava ele, convocavam-se e açambarcavam-se as putas; a pretexto da riqueza, enganavam-se os donos ou donas delas. Claro está que o Caguinchas pretendia banquetear-se e sair, como sói dizer-se, à francesa. O seu lema predilecto, de resto, enunciava-o sem subterfúgios: "Foder à portuguesa e sair à francesa" (que traduzido dá: "foder e não pagar"). A minha missão naquele previsível embróglio (que só Deus sabe como iria acabar), era argumentar e negociar tudo isso com as indígenas e alcoviteiras, assim que chegássemos ao local do festim.
Entretanto, enquanto íamos andando, ele, debaixo do lençol branco, ia rosnando qualquer coisa.
-"O quê?!...", perguntei eu, sem entender.
-"Estou a ensaiar o árabe." – explicou-me ele.
-"Mas, que diabo, tu não sabes falar árabe!..." – Admoestei-o.
-"E tu, sabes?..." –Ripostou ele, sibilino.
-"Não..." –Tive que reconhecer.
-"Então como é que sabes que eu não sei? – Atirou-me, em triunfo. E desatou numa algaraviada abstrusa, verdadeiramente compenetrado. Arengava pelos cotovelos e gesticulava com eloquência, para dar mais ênfase ao discurso.
Ultrapassando uma breve perplexidade, decidi contra-atacar.
-"Ouve lá, ó Caguinchas: se eu não sei esse árabe que tu falas como é que traduzo o que tu dizes?"
Interrompeu-se, subitamente, a pensar. Mas não pensou muito, pois em menos de nada já me dizia:
-"Porra, ó Dragão, fazes como eu: inventas!"
"Este gajo deve andar a tomar coisas", pensei para com os meus botões. "Estarei a sonhar?..."
Mas não estava. Caminhava, isso sim, em bom ritmo, pela rua acima, direito a "Nãovosdigoonde". Um autocarro amarelo passou por nós e recolheu dois velhotes mais adiante. O Caguinchas continuava a palrar um árabe imaginário e eu, para não lhe ficar atrás, decidi experimentar o japonês de improviso. Ensaiava até, naquele ronco gutural característico, um "ó filho da puta, ainda falta muito?", e ia ele responder-me, presumo, naquele linguajar ululante, um "aguenta lá os cavais, está quase!", quando, ao cruzar-se com o placard publicitário da paragem do autocarro, onde uma Fernanda Serrano horripilantemente prenha se exibia em promoção a não sei que usurário, o Caguinchas estacou, perfilou-se muito sério, embasbacado e, pior que tudo isso, inexplicavelmente silencioso. Tirou mesmo os óculos escuros e pôs-se a mirar e remirar a futura mãe com a maior das atenções.
Eu, que já o conheço, temi. Temi e preparei-me. Pressenti que não ia brotar dali nada de bom. O ar aterrado com que ele se voltou para mim não tardou a confirmar os meus sombrios presságios. Com um misto de angústia e solércia a devassarem-lhe o olhar, o Caguinchas deixou bem claro que estava em vias de ir proferir qualquer prodígio. Eu segurei-me ao chão o melhor que pude e mentalizei-me para a catástrofe. Não em árabe imaginário, mas em portugês de Alfama, as palavras brotaram-lhe, por fim, geladas, abominatórias:
-"Ó Dragão, esta mulher...esta mulher está deformada! Macacos me mordam se esta mulher não foi alvo duma lipo-conspiração!..."
Fiz o melhor que pude para tentar recuperá-lo de volta à órbita terrestre.
-"É a Fernanda Serrano, pá: Está grávida."
Mas o Caguinchas já ia para lá de Júpiter, a caminho de Saturno. Atropelava satélites e pontapeava sondas. Apontando veementemente o infausto placard publicitário, quase vociferava:
-"Não brinques comigo! Eu ainda sei o que é uma mulher grávida. Uma mulher grávida é uma paisagem tranquila, reconfortante, tem luz nos olhos! Esta desgraçada não tem nada disso. Está deformada, exibe-se num estado grotesco. Foi vítima duma monstruosidade qualquer, caralho, difícil de imaginar!..."
-"Lá estás tu, ó Caguinchas!... –Tentei acalmá-lo. – Não vês que as mulheres engordam quando estão grávidas, desatam a enfardar que nem debulhadoras!?...São coisas do caralho, decerto, mas não é caso para um alarme desses!...Irra!"
-"Não me fodas, pá!... Ribombou, indignado, cada vez mais fora de si e quase a evadir-se da Via Láctea. – Não me atires areia prós olhos! Eu bem que desconfiava que andas a ficar nazi: olhas para uma desumanidade destas e achas normal, normalíssimo, trigo limpo farinha amparo!..."
-"Desumanidade?! – Enfureci-me com o exagero. – Então a rapariga toda contente, numa figura toda ufana, a embolsar uma pipa de massa e tu vens-me com desumanidades?!..."
-"Caralho! Foda-se! –Clamou, iracundo. –Olha-me bem para ela! Vá, assesta-me bem essas miras nesta infeliz: quem quer que a desfigurou a este ponto, a este monte de banhas caóticas, horrendas, não pode ser humano!...Isto só pode ser obra de extra-terrestres, alienígenas tarados, emprenhadores vindos de outra galáxia!...Um raio me parta se esta desgraçada, em vez de bebé, não carrega um "passageiro" dentro dela!..."
Esta teoria Caguinchiana da predação intrauterina e intergaláctica não era nova. Pacientemente, ele passava a vida numa espécie de recolhimento laboratorial, a aperfeiçoá-la, a reunir provas, a pesquisar notícias. Para ver se saíamos daquele impasse e ele se calava de vez, lá me dei ao trabalho de contemplar o putativo aleijão com todas as minúcias que me eram requeridas. Antes não o tivesse feito.
Olhando bem para a rapariga, absolutamente irreconhecível de facto, uma certa repulsa começou a entranhar-se-me no espírito. A beldade de outrora, com que a memória paliava a realidade actual, cedia lugar a um doloroso estafermo. Para meu grande espanto, a teoria do Caguinchas já nem me parecia tão absurda quanto isso. Lembrei-me então do anormal - do trondão alvar - com quem a moça casara. Resignado, tive que admitir:
-"Pronto, pá. O país e o planeta, realmente, estão cada vez mais infestado de extra-terrestres. És capaz de ter razão. Talvez tenha sido mais um caso daquilo a que os especialistas chamam "alien-abduction e tu classificas como "lipo-conspiração"!...Satisfeito?"
Só que uma imensa tristeza instalara-se no Caguinchas. Uma tristeza que nem o triunfo científico sem precedentes amenizava.
-"Isto dá-me arrepios." – Murmurou, soturno.
-" Pois, mas adiante! – Tentei animá-lo. – Deixa lá isso; as putas estão à nossa espera!..."
Mas debalde. O Caguinchas ficara mesmo impressionado com o desastre. Com um luto magoado na voz, pouco mais conseguiu que gemer:
-"Eh pá, Dragão... vamos deixar as putas pra outro dia. Isto até me tirou a tesão!..."

Só espero que não venha a sofrer de stress pós-traumático.