domingo, março 05, 2006

A Genealogia do Matadouro - II. Irlanda

«Por volta de 1155, o papa Adriano IV teria concedido um direito de suserania sobre a Irlanda ao rei de Inglaterra, Henrique II. Os ingleses começaram, assim, a conquista da ilha, mas o seu domínio limitou-se durante longo tempo ao Pale, a costa oriental dos arredores de Dublin. Foi necessário esperar os Tudor para que os ingleses empreendessem a submissão de toda a ilha. Mas o ódio dos irlandeses, provocado pelo monopólio das terras, encontrou um novo alimento quando Henrique III tentou impôr o protestantismo. As lutas contra as novas confiscações de terras e a instalação dos colonos escoceses agravaram-se e tomaram o aspecto de uma verdadeira guerra religiosa.
EM 1641, novas ameaças de confiscações provocaram uma grande rebelião que durou mais de 10 anos e foi esmagada por Cromwell. Em 1649, este massacrou as guarnições irlandesas de Drogheda e de Wexford e empreendeu o extermínio total da população. Ao fim de 11 anos de lutas insurrecionais e de repressão, numa população inicial de 1 466 000 pessoas, 616 000 tinham sido mortas e as suas terras confiscadas tinham sido distribuídas pelos soldados de Cromwell ou por “empresários” que as obtiveram por adjudicação. O trabalho dos chacinadores foi prolongado pela instituição de tribunais especiais a que foi dado o nome de “tribunais de matança”. Entre 30 000 e 40 000 irlandeses emigraram para a Europa ou para a América. Por seu lado, os Ingleses venderam como escravos à Jamaica e aos Barbados 60 000 crianças, mulheres e raparigas. Os irlandeses sobreviventes foram acantonados numa única província do Oeste, o Connaught, para onde os ingleses os empurraram aos gritos de: “into Hell, into Connaught!” A restauração manteve este sistema e o Establishment Act de 1660 sancionou oficialmente as mudanças de propriedade.
Em 1704, Guilherme III promulgou leis penais terríveis, que proibiam aos irlandeses a compra de terras e decidiam igualmente sobre a partilha das que eles possuíam quando da sua morte: os mesmos textos fechavam aos irlandeses toda a hipótese de acesso a uma função pública.
Em 1800 a dominação inglesa agravou-se com o Acto de União que retirou toda a autonomia à Irlanda, não lhe deixando mais do que o direito de ter deputados na Câmara dos Comuns. Esta dominação apoiava-se igualmente na Igreja Anglicana, a única oficial, a quem os Irlandeses, católicos, deviam pagar a dízima, e na estrutura agrária resultante da conquista: a maior parte da terra pertencia a grandes proprietários ingleses, que tinham o direito de despedir como lhes aprouvesse os seus rendeiros irlandeses.
O ódio contra a Inglaterra ia aumentar durante a terrível fome de 1846-1848, que provocou a morte de 500 000 irlandeses e a emigração para a América de outros dois milhões. O liberal Gladstone tentou resolver o problema: fez votar o desestablishment da Igreja Anglicana (1869) e as leis agrárias de 1870 e 1881; mas foi derrotado em 1886 no seu próprio partido quando propôs o Home Rule que fez finalmente aprovar em 1912, 1913 e 1914, apesar da oposição de lordes, de conservadores e dos ulsterianos protestantes. De resto, o Home Rule já estava ultrapassado, em 1914, pelos independistas do Sinn Fein que, após o fracasso da insurreição da Páscoa de 1916, chegaram ao poder em 1918. Em 1921, a Inglaterra reconheceu a independência de uma Irlanda amputada do Ulster, onde os irredutíveis do IRA se refugiaram no terrorismo activo.»

- Guy Richard, “A História Inumana, massacres e genocídios das origens aos nossos dias”


Registem-se algumas tipificações do processo: etnocídio ou purga étnica; extermínio planeado e executado ao longo de séculos; motivação essencialmente espoliadora; pretexto religioso. Julgo que os ingleses -os diligentes funcionários dos "tribunais de matança", por exemplo-, durante todo esse tempo, não padeceram de grandes interrogações morais ou angústias metafísicas acerca da justeza dos seus propósitos, bem como das proezas e preceitos inerentes. Aliás, nesse departamento, convém que nos vamos desde já habituando a uma espécie de paradigma: questionar essa boa gente sobre tão extravagantes escrúpulos faria o mesmo sentido (e obteria certamente a mesma resposta) que colocar equivalente problema aos zelosos funcionários dos nossos matadouros municipais.

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