quarta-feira, maio 31, 2006

Anelídeos e gastrópodes

«Mas quando se aprende a curvar a espinha e a baixar a cabeça diante do "poder da história", acaba-se por aprovar com a cabeça, como um bonzo chinês, qualquer poder, quer seja do governo ou da opinião pública ou da maioria do número, e por agitar os membros em obediência estrita a quem tem nas mãos os fios. Se qualquer sucesso é devido a uma necessidade racional, se qualquer acontecimento é uma vitória da lógica ou da "Ideia", então ponhamo-nos de joelhos perante toda a espécie de sucessos. Quê? Desapareceram as mitologias soberanas? Estarão as religiões a agonizar? Olhai uns instantes para a religião do poder da história. Observai os sacerdotes da mitologia das ideias e os seus joelhos esfolados. As próprias virtudes, não marcham todas elas atrás desta nova crença? Ou não será abnegação quando o homem histórico se deixa humilhar até ao estado de espelho objectivo? Não será magnimidade renunciar a todos os poderes do céu e da terra porque em todos estes poderes se adora o poder em si? Não será justiça ter permanentemente nas mãos a balança das forças e examinar minuciosamente qual é a mais forte e mais pesada? E que escola de conveniências é este modo de encarar a história! Julgar objectivamente tudo, não se irritar com nada, não amar nada, tudo compreender, suaviza e torna maleável. (...)
Qualquer que seja a virtude de que se fala - justiça, generosidade, bravura, sabedoria, piedade para com os humanos - o homem só é virtuoso quando se revolta contra a força cega dos factos, contra a tirania do real e quando se sujeita a leis que não são as que regem situações históricas dadas. Nada sempre contra a corrente da história, quer lutando contra as suas paixões, que são para ele a realidade mais próxima e estúpida, quer submetendo-se à honestidade, no momento em que a mentira tece à volta dele as suas teias cintilantes.»

- Nietzsche, "Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida"

O culto rastejante da História é, invariavelmente, um sinal inequívoco de espíritos invertebrados. Na carcaça de Hegel fuçam duas hostes: à esquerda, anelídeos; à direita, gastrópodes. Respectivamente: sintetizadores do esterco e babosos de capelinha às costas.

Sem comentários: