terça-feira, fevereiro 19, 2008

Agora é o Verbo. No princípio, não sei.

Não há apenas verbos reflexivos: também os há compulsivos. São verbos que são utilizados pelos povos, no linguajar como na realidade, duma forma automática. É assim que alcançam o estatuto de tique idiossincrático. Ou seja, tornam-se veículos quotidianos da própria existência.
Nos americanos, por exemplo, temos, à cabeça de outros igualmente espectaculares, o verbo "bombardear". Entre os alemães, por szeu turno, resplandece o verbo trabalhar. Da mesma forma que entre os ingleses, campeia o verbo snobar ou entre os franceses, o verbo "bavarder" (palrar ou tagarelar). Americano que não bombardeie (em acto ou em espírito) não é digno desse nome. Tal qual inglês que não olhe por cima da burra, alemão que não se desunhe a produzir ou francês que não gralhe pelos cotovelos. Não exercendo o verbo colectivo, não exercem a existência individual.
Assim, quando compra o jornal de manhã, ou atende ao primeiro telejornal do dia, o americano digno desse nome passa revista e confere: "Ah, hoje estamos a bombardear o Paquistão!...Óptimo." E fica tranquilo, de alma restaurada, para o resto da jornada. O sol nasceu; a terra gira no seu eixo normal; a vida prossegue em bom ritmo. Enquanto bombardearem alguém, acredita. Deus existe e bafeja. Aquele pesadelo lúgubre que, lá no fundo, o angustia (e que consiste em acordar e ler, ver ou ouvir nas notícias: "Hoje não bombardeamos ninguém - estamos a ser bombardeados!..."), fica, para já, sem efeito. Dissipa-se até ao dia seguinte.
Também o alemão, ao escutar, ler ou televisionar os gráficos e estatísticas das produções, exportações e demais realizações, proclama com orgulho e sem rebuço: "Ah, hoje exportámos X BMWs e vamos produzir mais Y Wolkswagens. Wunderbar!, tudo corre sobre rodas!"
Naturalmente, por esta altura da perlenda, o leitor já se perguntará: e o português? Ó Dragão, o português faz como? Que tremendo verbo o avassala?
Bem, o português, como não podia deixar de ser, mais ainda que o judeu, é um caso único. Porque o lusitoino, além de dois ou três verbos compulsivos que o movem de arrasto -como sejam, telefonar, acelerar, viajar ou opinar catedraticamente -, é o único povo que congrega num mesmo verbo a compulsão e a reflexão. Por outras palavras, constitui-se como a única espécie de gente ao cimo deste desgraçado planeta cujo principal verbo compulsivo é simultaneamente reflexivo. Trata-se, como já devem ter adivinhado, do verbo "governar". Em Portugal, governar é sempre -e freneticamente - governar-se.
Se bem que no restante seja igual. Como em qualquer democracia, da américa à alemanha, os que exercem o verbo colectivo automático exercem-no em nome de todos. E, para que o primor seja completo, todos se revêem e comungam, em espírito, dos feitos, proezas e cometimentos dessa sua elite consignatária.

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