segunda-feira, maio 25, 2009

Rarefacção do espírito

«Tudo ali é quebrado, anónimo e impertencente. Vi ali grandes movimentos de ternura, que me pareceram revelar o fundo de pobres almas tristes; descobri que esses movimentos não duravam mais que a hora em que eram palavras, e que tinham raiz - quantas vezes o notei com a sagacidade dos silenciosos - na analogia de qualquer coisa com o piedoso, perdida com a rapidez da novidade da notação, e, outras vezes, no vinho do jantar do enternecido. Havia sempre uma relaxação sistematizada, entre o humanitarismo e a aguardente de bagaço, e foram muitos os grandes gestos que sofreram do copo supérfluo ou do pleonasmo da sede.
Essas criaturas tinham todas vendido a alma a um diabo de plebe infernal, avarento de sordidezas e de relaxamentos. Viviam a intoxicação da vaidade e do ócio, e morriam molemente, entre coxins de palavras, num amarfanhamento de lacraus do cuspo.
O mais extraordinário de toda essa gente era a nenhuma importância, em nenhum sentido, de toda ela. Uns eram redactores dos principais jornais, e conseguiam não existir; outros tinham lugares públicos em vista no anuário e conseguiam não figurar em nada da vida; outros eram poetas até consagrados, mas uma mesma poeira de cinza lhes tornava lívidas as faces parvuas, e tudo era um tumulto de embalsamados hirtos, postos com a mão nas costas em posturas de vidas.
Guardo do pouco tempo que me estagnei nesse exílio de esperteza mental uma recordação de bons momentos de graça franca, de muitos momentos monótonos e tristes, de alguns perfis recortados no nada, de alguns gestos dados a serventes do acaso, e, em resumo, um tédio de náusea física e a memória de algumas anedotas com espírito.»

- Fernando Pessoa (a armar ao Bernardo Soares)

Deviam emoldurar no tecto deste jardim à beira-mar estagnado:
«Havia sempre uma relaxação sistematizada, entre o humanitarismo e a aguardente de bagaço e foram muitos os grandes gestos que sofreram do copo supérfluo ou do pleonasmo da sede.
Essas criaturas tinham todas vendido a alma a um diabo de plebe infernal, avarento de sordidezas e de relaxamentos. Viviam a intoxicação da vaidade e do ócio, e morriam molemente, entre coxins de palavras, num amarfanhamento de lacraus do cuspo.»




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