sexta-feira, abril 06, 2012

Ecce Homo









« Então saiu Jesus com a coroa de espinhos e o manto de púrpura. Disse-lhes Pilatos: "Eis o Homem!"»
  - João, 19, 5

Durante muito tempo, devo confessá-lo, achei uma extravagância muito grande o acto de Jesus lavar os pés aos discípulos (tanto mais que a minha simpatia pelo Mestre é inversamente proporcional à irritação que me suscitam os pusilânimes dos aprendizes). Mas na verdade, o espírito de Deus que no princípio contemplou o espelho das águas, tanto ou mais que pela boca de Jesus e da sua inelutável sapiência, é pelos seus pés que se manifesta. A Palavra é indissociável do Caminho. Não basta que o homem fale, que o homem pense: é necessário que o homem caminhe e atravesse a terra; que se levante e saia da caverna pelo seu próprio pé. O estar na caverna equivale ao estar fechado na terra, o recusar-se a nascer e contemplar o céu. Este homem na caverna é um homem soterrado, jazida, sepulcro. A caverna, entrementes, é o mundo e o seu próprio corpo: fechado e encasulado inertemente neles, negando-lhes o espírito, o ânimo e a luz que deveria emprestar-lhes, corrompe-se, deteriora-se, putrefaz-se e condena-os também, ao mundo e ao corpo, à sepultura. Deus confiou  no Homem, confiou-lhe, designadamente, poder sobre a terra. Se, entretanto, em vez de a velar, guardar e amar como deveria, o homem a amaldiçoou e contaminou com sangue de fratricídio e teias de esquecimento, a ele competirá necessáriamente purificá-la e redimi-la. Inerentemente, a redenção do mundo decorre da sua própria redenção. Os pés que o levaram para longe, para fora do olhar de Deus, são os pés que terão de perfazer o caminho de regresso. O sulco da ferida será também o sulco da cicatriz. Ao lavar os pés, Deus despede-se: prestes a terminar a sua peregrinação, prepara o homem para a dele. Ao mesmo tempo, abre-lhe o caminho pelo seu próprio exemplo. A descida ao homem encerra-se com a descida aos pés do homem: o pé representa o fundamento, o princípio, o que faz o caminho e transporta. A lavagem simboliza a regeneração, a refundação, a restauração do princípio. A Palavra desligada do fundamento, como a rama sem pé, é estéril, vazia, artificial. Jesus, como Deus através Dele, não procura papagaios nem fariseus hipócritas: as palavras podem ser fingidas, mascaradas, forjadas, como o fazem os sacerdotes e os doutores da lei, mas não o Caminho. É no caminho que o coração - a coragem - se mostra; como é com a sua acção na terra que o Homem alcança o Céu. Não é depois da Vida que está a gratificação: a gratificação é já a própria Vida. O coração não está apenas no fim do caminho: o coração é o caminho. Caminhar é ser esse coração vivo, que palpita, que aquece, ilumina e, sobretudo, ama a vida e todo o ser vivo.

Ecce Homo!  Ao mostrar o Homem, Deus mostra-se ao Homem.

E serve este breve trecho, retirado do Tratado da Besta, embrulhado neste claro  momento de sinceridade rara, para vos notificar duma coisa muito simples, alta e fundamental, ó leitores (com as leitoras em camarote presidencial, naturalmente): eu gosto de vós. Embora não pareça. Embora a maior parte do tempo eu até pareça morar noutro planeta, numa qualquer galáxia a anos luz. Porque escrever, para mim, mais - muito mais - que uma forma de contender ou exorcizar o que me desgosta, é um acto de atingir quem e o que eu gosto. E, diga-se solenemente, é a única  forma genuína de libertação que conheço: a libertação do umbigo através do amor aos outros. Essa bitola, aliás, pela qual são medidos e sacrificados os grandes heróis da antiguidade (e da Civilização), de Prometeu a Jesus: a filantropia. Fica assim dito, porque é preciso dizê-lo... Antes que me esqueça, antes que anoiteça, antes que desapareça...

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