quinta-feira, novembro 01, 2012

A Procissão dos Flagelantes



Há marasmos mentais que eu, de todo, dispenso. Certas palhas de rebanho, em espécie de psico-ração de comveniência, essas, então, repugnam-se. Por exemplo, aquela muito fresca e repetida: a saber, que foi o socialismo que nos trouxe até aqui, a esta bela bancarrota nova e reluzente. Suponho que se referem ao "socialismo prático", do estilo União Soviética,  (e não ao socialismo angélico que, como todos sabemos, paira, sublime e diáfono, incólume a chacinas e genocídios, à espera da encarnação perfeita num qualquer amanhã chilreante). Este socialismo angélico, de resto (e não esqueçam o que eu ia dizer), é irmão gémeo daquele liberalismo inefável que também flana e flui, em subtil destilaria celestial, aguardando o dia da perfeita e não menos chilreante aurora. Para os seus adeptos e catecúmenos, o liberalismo puro nunca existiu na prática ( e por isso ele é eternamente puro): o que tem pululado e tripudiado pelo mundo é perversões, natural e fatalmente socialistas, daquela imaculada e pulcra essência. Certos espíritos menos benevolentes até já se interrogam se não derivará tudo duma má relação de ambos com a realidade: enquanto o liberalismo não vislumbra quaisquer orifícios nesta, o socialismo  aproveita e viola-a de todas as maneiras possíveis e imaginárias.  Voltando agora onde eu ía, terá sido mesmo através duma dessas maneiras, nitidamente imaginária, que acordámos, um belo dia, nesta esplêndida bancarrota. 
Ora, foi público e notório que o país, nos últimos decénios, se entregou a desregramentos mais que típicos dos antigos paíse socialistas, como, por exemplo (e só para citar os mais emblemáticos): orgias gerais de crédito bancário; consumo desenfreado de gadjets, bugigangas e artigos de luxo; importação desaustinada de tudo e mais alguma coisa; abolição eufórica de fronteiras;  cornucópia de televisões, revistas e jornais em torrencial dilúvio de toda a casta de incitamentos publicitários à ganãncia e luxúria épicas e salvíficas; liberdade de expressão em barda; subsídio generoso a toda a espécie de minoria da moda internacional,; imigração selvagem; destruição metódica e excternamente patrocinada de todo o aparelho produtivo; desindustrialização ufana; multipartidarismo infestante; parlamentarismo incontinente; turismo obsessivo;, agrofobia histérica; financeirização transcendental; etc, etc. Em suma e síntese: como podemos constatar, a exacta réplica de todos os vícios e taras soviéticas (ou de quaisquer dos seus satélites de leste), não é? Ou mesmo de Cuba, da Albânia, da Coreia do Norte, da China Maoista, senão mesmo do Camboja de Phol Pot!... Ressalta à vista e entra pelos olhos a dentro. Especialmente, untado a vaselina, pelo mais cego de todos!... Porque, repito e trepito, como todos estamos cansados de saber, à data do colapso do paraíso terreal socialista, toda aquela gente, um pouco à semelhança do Império Romano lá das antiguidades, chafurdava em toda a variedade de orgias, sobretudo consumistas, opinorreicas e plutofaccientes. Até metia nojo!
Bonito; e segundo os entendidos, qual o principal factor para esta nossa queda ininterrupta no pecado socialista em larga escala?  É que temos uma constituição socialista, proclamam eles, esgazeados e com a coifa ao desalinho; assedia-nos um tabu legal e atávico  que nos inibe de abraçarmos os redentores hábitos capitalistas e nos constrange, tirânico, ao caminho da perdição. De guarda a este hediondo santuário do mal, patrulham demónios e ogres retintamente socialistas, desde o patriarca Soares até ao último guincho Sócrates, ou seja, desde o proto-socialismo até ao metro-socialismo. O mesmo Soares que, nas suas próprias palavras, guardou o "socialismo na gaveta" e tirou a democracia liberal e palramentarista do armário, onde ela estava escondida desde o 25 de Abril, cheia de medo dos comunistas e à espera que a descolonização passasse; e o mesmo Sócrates cujo paradigma inspirador era um marxista-leninista empedernido chamado Tony Blair, imagine-se. Conseguem imaginar? E já agora, imaginem também a mesma choldra mascarada de povo, entre eleiçados e eleiçores (representação, babam eles), que se entregou a todos os desregramentos, que converteu todas as leis e códigos legais numa nova espécie de papel higiénico regimental, que se marimbou para quaisquer regras milenares do civismo, vá lá, só mais um pequenino esforço, e tentem imaginar toda essa ciganagem cheia de inibições com a Constituição. A cultivar traumas e stresses...fobias angustiantes... O Código Penal não os inibe; as próprias leis da natureza não os inibem, o Diário da República funciona por conta, balcão, recreio e encomenda. Mas a Constituição inibe-os, coitadinhos. Revista e descafeinada, podada e recauchutada, ainda os inibe. Demove-os. Causa-lhes aquela disfunção eréctil mental em que vivem diante da realidade. Com a inteligenciazinha mirrada, a moral descartável e a coluna vertebral gasosa, assistindo, frustes e gelatinados, às contínuas violentações socialistas. A constituição é que não os deixa, é que os impede, é que os obriga a ficar assim, hirtos, meros portadores dum acessório inútil, triste, pendente.. Todavia, uma gaitita mágica, fadada misteriosamente, intimamente agregada ao futuro da nacinha.  Este só se endireitará quando eles endireitarem aquela. Mas  primeiro, detalhe crucial, condição sine qua qua, há que lhes tirar a Constituição da frente. Porque então, então sim, livres dessa maldicinha, a realidade vai ver e, sobretudo, eles vão conseguir ver e encarar a realidade.Sem complexos. E a economia vai trepar nos gráficos à medida e ao ritmo com que a sapiência protuberante for capaz de lhes trepar na barriga, à conquista do umbigo. E ninguém duvide: no mínimo, será vertiginoso!...
Só que até lá vamos penar. Vamos pagar. Vamos expurgar-nos e penitenciar-nos nesta procissão de flagelantes. Temos que mostrar ao mundo, aos mercados, às feiras, às praças e até aos lugares de hortaliça que estamos arrependidos, compungidos, sinceramente pesarosos de todos este tempo estéril em que nos entregámos, de corpo e alma, ao deboche socialista. Na esperança paciente e godótica do dia radioso e deslumbrante em que a inteligência solene dos nossos formidáveis gestores ganhe vigor vertical e deixe de apontar, murcha  e engelhada, ao olho do cu. Da Europa tanto quanto da tribo.

4 comentários:

José Domingos disse...

Excelente. Parece uma républica de bonzos.

zazie disse...

ahahahaha

Delicioso

zazie disse...

Este é dos posts mais sabiamente loucos que escreveste.

dragão disse...

Ando a pregar há uma série de anos que à bancarrota moral segue-se sempre, invariavelmente. a bancarrota económica. Ninguém quis saber.
Mas o mais desolador é assistir á bancarrota intelectual. O nível da inteligência nacinhal ainda caiu mais baixo que a economia.