terça-feira, dezembro 18, 2012

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(Som de fundo:
"À Nossa Senhora das Mordomias")




Leitores, compatriotas, amigos,
minhas senhoras e meus senhores
Excelências,

eu tinha preparado um brilhante e solene discurso. Tinha mesmo. Uma pungente e impressionante mensagem de despedida. Coisa descoroçoante, acreditem, de fazer chorar as pedras... Sabeis que não minto; que, quando quero, embora raramente, sou capaz de cintilâncias e granifulgências arrebatadoras. Pois é verdade que tinha. Só que o meu sócio, confrade e imediato Ildefonso Caguinchas, mais que as palavras, tirou-me as imagens da boca. Vendo a minha querida Svetlana assim exposta, fiquei também eu núcego de metáforas e hipérboles, sinestesias e onomatopeias, anacolutos e anáforas. Que vos hei-de eu dizer numa hora destas?... Olhem, vou ali comprar fósforos!...





2...

Diz-me o tirano: "Acabou, Caguinchas! Vai lá e despede-te das pessoas."
 Portanto, cá estou. Não sou muito de discursos. E como uma imagem, dizem, vale mais que mil palavras, deixo-vos uma imagem que vale mais que um milhão... E que, não é preciso acrescentar, simboliza tudo o que eu penso do universo, da vida, da humanidade e do tempo efémero que aqui passamos...









PS: Sim, porque tudo bem espremido, filosofias, literaturas, economias, políticas (excepto certas religiões mais dadas à monotonia), tudo se resume a uma frase: "Mim Tarzan, tu Jane!..."

Ó Leonilde is Love! Ó Leonilde is Love!...


(E agora roam-se de inveja, ó seus piças moles!!...)

segunda-feira, dezembro 17, 2012

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Havia que escolher um postal que sintetisasse a generalidade do que aqui ficou escrito e que servisse também de mnemónica para o futuro...

Nada comos os provérbios do povo a que pertenço, só que devidamente adaptados à realidade moderna e, consequentemente, despidos de todo o eufemismo e suavização tradicionais. Nem todos nascemos brandos aqui nesta Brandoa...



Provérbios impopulares do Dragão

· Nem tudo o que lês é ouro
· Tristezas não apagam dívidas
· Vêem-se caras, não se vêem cotações
· Devagar se vê ao longe
· O silêncio é de outro
· A cavalo doido não se molha o dente
· Não guardes para amanhã o que podes foder hoje
· Os umbigos são para as ocasiões
· Em tempo de guerra não se limpam Karmas
· Cada maluco com a sua maria
· Cão que ladra não fode
· Contra flatos não há argumentos
· Da discussão nasce a cruz
· De boas invenções está o Inferno cheio
· De noite todos os patos são parvos
· Mudam-se os tempos, mudam-se as vaidades
· Não deites foguetes com fé na testa
· No papar é que está o ganho
· No melhor plano cai a nódoa
· O hálito não faz o monge
· O que não mata, engoda
· O Saber não ocupa lagar
· O futuro morreu de velho
· Olhos que não vêem, coração que não mente
· Cabrão fora, dia santo na gaja
· Quem fala, contende
· Quem morre por gosto, não descansa
· Quem espeta sempre alcança
· Quem mais jura, mais monta
· Quem te evita, teu amigo era
· Quem tem cu, tem mundo
· Um mal nunca tem dó
· A união faz a forca
· Ardor com ardor se apaga
· As aparências elegem
- Diz-me em quem mandas, dir-te-ei quanto é
-  A ração tem sempre cliente

domingo, dezembro 16, 2012

4...



«O Homem é humano quase tanto como voa a galinha. Quando apanha uma traulitada, quando um carro a obriga a bailar, lá vai ela pelos ares até ao telhado, mas logo de seguida aterra no lodo e desata a debicar na bosta. É a natureza, a ambição dela. Entre nós, na sociedade, dá-se exactamente o mesmo. Deixa-se de ser tratante sob a acção de uma catástrofe. Quando tudo torna ao normal, a natureza retorna logo ao que era. Por isso mesmo é que, de uma Revolução, só vinte anos depois se pode ajuizar.
"Eu sou! tu és! nós somos rapaces, pérfidos, sacanas!" Jamais se dirão coisas destas! jamais! Jamais! verdadeira revolução porém seria a das Confissões, a grande purificação!»

-Céline, "Mea culpa"

Peguem em qualquer postal que eu aqui tenha escrito em 2005 ou 2007 ou 2010 sobre os (des)governos da época. Ajusta-se que nem uma luva ao desgoverno de hoje. A mesma coisa sobre americanos, europeus, árabes (de burka ou de penca),  esquimós, marcianos, aliões constipados, etc, etc. Às tantas, um tipo dá consigo a sentir-se papagaio de si próprio. A patinhar ab aeterno em bosta. Ou a debicar militantemente nela, como a galinha do Céline. E o pior é que como em tudo, o eco fica sempre àquem do original. A repetição perde sempre o brilho, o lustro da descoberta. De facto, neste mundo doravante entregue aos vermes e aos parasitas, as coisas não evoluem: deterioram-se. O único sentido de mudança que experimentam é a alteração física - essa qualidade de movimento estático definido por Aristóteles como geração/corrupção. Eventualmente, os países, os povos, as civilizações são como as pessoas. Nascem, crescem e morrem. No fim da geração (e das gerações ínclitas) aguarda fatalmente a corrupção (e as corrupções sórdidas). Senil, amnésico, hipocondríaco, flatulento, velhaco, cobarde, podre do corpo e abandonado pelo espírito, Portugal está a morrer. Não é matéria para galhofa, chalaça, nem  riso. Aos desfiles fúnebres assiste-se em silêncio. Um Dragão não é uma hiena.

sábado, dezembro 15, 2012

5...




«(...)Leobundo dirigiu-se para a Síria, direito a Antioquia.
Como sempre,ao longo do seu itinerário - virasse à esquerda, virasse à direita, subisse às montanhas, descesse aos rios -, não encontrava vivalma. Mesmo da criação, nas quintas, só os porcos, adultos e calejados, o recebiam, remirando-o então interessados, de dentro das suas pocilgas, ou fossando nas enxovias que bordejavam as casas, conforme ele passava célere, em ritmo de marcha acelerada e trompeta justa. Leobundo benzia-os e prosseguia em bom ritmo. Desde Jerusalém, adquirira o hábito de se ir arauteando, em jeito de anúncio: "A mim, os paralíticos, os leprosos, os cegos-tristes e os surdo-gagos!"
Também as populações e as regiões visitadas, aos poucos, começavam a adoptar curiosos costumes. Assim, consoante se apercebiam da  sua aproximação (o que não era difícil) e reuniam um cálculo abalizado sobre o seu presumível itinerário, iam abandonar todos os seus paralíticos e cegos-tristes bem no enfiamento da rota do santo. Nos dias em que o vento soprava de feição, ainda o beato peregrino vinha a quilómetros, e a cura milagrosa não se fazia esperar. Os paralíticos, arrebatadamente, levantavam-se, e desatavam, mais que a andar, numa correria louca; os cegos-tristes, sem sequer quererem saber nem ver onde raio punham os pés, largavam em tropel semelhante, doravante alegres e dando graças a Deus, já que para mirar a abominação correspondente a semelhante aroma, mais valia não ver, bendita a hora em que haviam perdido a visão, que os poupava a tais horrorers, etc, etc. E mesmo quando, mais tarde, os repescavam dos precipícios, poços ou rios onde se despistavam por via da desorientação, encontravam-nos sempre com um sorriso nos lábios, mesmo se mortos ou feridos. O poder do santo só não era eficiente junto dos surdo-gagos, pois estes, à primeira inalação, regrediam imediatamente para surdos-mudos. Quanto aos leprosos, como já sabemos, o panorama era misto, mas não deixava de ser animador: aqueles que já haviam perdido o nariz recebiam-no cortesmente, escutavam-no e tornavam-se mesmo seus discípulos; os que perseverassem com nariz fugiam apavorados; mas todos eles, à uma, perdiam a melancolia e o acabrunhamento que, até aí, os assombrava.
Foi numa manhã cinzenta de baixas neblinas que Leobundo regressou a Antioquia, ou melhor, aos arredores desta, junto da coluna onde Simão, o seu mestre-treinador, morava.
É claro ue se fizera preceder duma debandada miraculada de paralíticos-corredores e cegos-alegres. Esta revoada anunciadora começava a tornar-se, para bom entendedor, péssimo e indubitável augúrio.
Mas Simão, lá nas alturas onde vivia, pouco se apercebia das peripécias e folclores, sempre patéticos, do mundo. Nessa noite dormira particularmente feliz pois os seus adeptos e admiradores tinham-lhe acabado de elevar a mansão até aos 22 metros onde agora se encontrava. Mais próximo doravante do céu e, por conseguinte, de Deus, Simão afagava voluptuosamente as nuvens, sem reparar na revoada de entrevados-corredores e cegos-alegres que, mais abaixo, desarvoravam.
Estas revoadas, convém referi-lo, faziam-se acompanhar de gritarias e alaridos  onde predominavam "Deus nos acuda!", "Ó da guarda!", "salve-se quem puder!", "Ai minha mãe!, "Nossa Senhora nos valha!, "vade retro e abrenuncio!", e por aí fora. Essa manhã não foi excepção: os adeptos e fiéis de Simão, acampados à volta da coluna, puideram, com grande estupefacção, vê-los passar em correria desautinada, como se a própria peste os perseguisse. Um dos dos cegos-alegresq ue, entre sprintes e tombos, se distinguia pelo vigor com que accionava os joelhos, veio mesmo esbarrar estrondosamente no poste magnífico onde o asceta apontava ao céu. Correndo a socorrê-lo e ampará-lo - ao cego desgovernado, já que o asceta continuava firme lá no alto -, os fiéis, perplexos, interrogavam-no sobre os motivos para tanta pressa e as razões de tão ébria condução. Mas logo que recobrou os sentidos, o frenético invisual esbracejou que nem um endemoinhado, cuspiu vários dentes e, apesar do nariz a golfar sangue, arrancou num galope ainda mais desaurido do que antes. Enquanto ele se ia despenhar por uma ribanceira deveras íngreme que ficava logo adiante, os adeptos de Simão entreolhavam-se, entre aturdidos e preocupados. Que raio se passava, afinal?
É preciso recordar que muitos deles eram peregrinos oriundos de longínquas paragens, pouco eruditos nos costumes e perigos da região. Chegavam, após árduas jornadas, na expectativa de algum milagre, relíquia ou sermão iluminante. Madrugavam e congregavam-se ali, ainda mal o sol raiava, porque era todos os dias àquela hora que o santo, lá de cima, procedia à vazão diária. Uma multidão ansiosa montava sentinela atenta à liquefacção inspirada. Ao princípio, quando a coluna pouco mais tinha que três metros de altura, era simples: o jorro descia coeso e bem defenido. dada a boa visibilidade, conseguia prever-se com eficaz antecipação para que lado o asceta visaria. A turba convergia então, não sem alguns precalços e atropelos, estendendo potes e vasilhames. Mas depois que o torreão se elevara para lá da dezena de metros, o vento e o prognóstico começaram a interferir. O jorro derivava, a maior parte das vezes, para chuveiro. Nunca se sabia exactamente que ponto cardeal o anacoreta aéreo privilegiaria para a sua devota rega. O cálculo das probabilidades implantou-se. Complexos processos de adivinhação e vaticínio antecediam a madrugada. Áugures profissionais passaram a montar consultório nas redondezas e a cobrar tarifa aos crentes. Postos de observação artificiais terão sido levantados, com o intuito de espreitar o eremita e transmitir as suas tendências. "É leste!", gritavam os vigias; ou "é sudoeste!", avisavam os logradores.  E a maralha comprimia-se, atropelava-see contundia-se por um lugar vantajoso, à bica do santo.»

- in "Leobundo, o Mártir"


Duas ou três notas complementares, se me permitem abusar da vossa condescendência.  É evidente que estamos perante um exercício cruel de humor negro. O único, aliás, que verdadeiramente me interessa e apaixona. Mas também uma espécie que em Portugal gera invariavelmente um dose monumental de incompreensão, para não dizer mesmo desconforto. Até à ironia, em porções suaves e descaroçadas, a malta ainda vai. Todavia,  dum modo geral, mesmo essa é olhada de esguelha, com desconfiança, melindre bacoco ou desdém alarve. Será consequência dum défice endémico de inteligência - isto é, serão os portugueses, intrinsecamente, um povo troncho e estúpido, em que a nata e a borra se confundem no mesmo paúl de indigência mental? Bem, nisso, e no tempo actual, o povo português não se distinguiria da generalidade dos povos, sobretudo ocidentais. Pelo que não vou por aí: Se isso, em parte é verdade, não o é absolutamente. Portanto, não define a coisa nem o fenómeno envolvente da coisa. Eu diria antes que o que cada vez mais atravanca e menoriza o pensamento das pessoas é a pressa, a vertigem aquisitiva, de bugiigangas tanto quanto de notícias, de sinais exteriores de sucesso tanto quanto de (pseudo)conhecimentos - sendo que, para cúmulo, a cultura do conhecimento refina-se e resume-se sobremaneira no "conhecimento de pessoas úteis", e nas mil e uma formas, sortilégios e expedientes para seduzi-las e atrai-las ao nosso proveito, nem que seja,  à falta de melhores trunfos ou armamentos, pela bajulice, o rapapé e a tele-osmose pública, estrepitosa e repenicada. Dessa vertigem resulta a fatal superficialidade do crivo: sempre a encher-se e sempre a sentir-se vazio. Quanto mais perpassa menos retém. E essa, infelizmente, é a cultura da internet, do google, da wikimérdia, do palramento que alastra da acrópole ao necrotério. Ingurgita-se cada vez mais, mas digere-se cada vez menos. Tudo é uma papa. E não tarda, nem isso: pílulas e soro directo na veia, o que dispensará gastos supérfluos, como actualmente, com o funil. Diz-se que os capitalistas promoveram a alfabetização para pôr as massas a ler jornais. Já passaram à segunda fase: agora já as colocaram a escrevê-los. Bem como a best-sellers literários E aí o fenómeno adquire contornos tenebrosos, que se traduzem numa constatação tão gritante quão eloquente: o segredo não está em limitar e, muito menos, reprimir, a liberdade de expressão; o truque, através do despejo ininterrupto de "informação" e expressão à pendura, consiste, ao invés, em, atrofiar, até à erradicação funcional, mais que a liberdade, a própria possibilidade de pensamento.  Desde que não penseis, podeis dizer tudo o que vos der na real gana. Aliás, quanto mais tempo gastardes a debitar esses chorrilhos imarcescíveis entre a lamúria e a aleivosia, esse perpétuo diz-que-diz-do-que-o-outro-disse, menos perigo - e sobretudo tempo! - há de pensares efectivamente no que quer que seja. As pessoas ainda não perceberam que a troco da palavra gratuita, estão a dar, de barato e confisco, o sentido. A coisa descamba assim num recreio infantil em átrio de manicómio, onde a opinião e a pilinha já não se distinguem. Micro-napoleões do sitemeter, nano-profetas da economia, mini-lenines de chucha, churchils'r'us de plástico, escuteiros-mirins da disneylândia esbirra competem por púlpito, pedestal e megafone.
Para mim, basta.

PS: Um último reparo, tendo até em atenção o velho Simão, Estilita, na sua coluna ascética. Os homens regrediram muito desde esses baluartes da demanda vertical. O mundo processa-se agora às avessas.   Assistimos, não raramente, a personagens invertidas destes promontórios. Hoje em dia, por exemplo,  incapazes de subirem na coluna, os descetas afundam-se no blogue, isto é, escavam um buraco, do fundo do qual expelem os seus ruídos. Também congregam devotos. Só que estes, já não elevam os pescoços à coca das pingas redentoras: debruçam-se, acocoram-se, tão sòmente, na fossa, à espera do géiser. A ascese da coluna deu, pois, lugar ao chafariz de bidé. Outrora, como se fustigavam a aspergiam as cabeças, agora abluem-se, lambuzam-se e acariciam-se os cus. Afinal,  nada de surpreendente, num tempo em que que estes cada vez menos se distinguem das caras. E  não precisam que eu vos aponte casos reais, concretos e avulsos disto, pois não?... Afinal, não fiz outra coisa nestes últimos nove anos.


sexta-feira, dezembro 14, 2012

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«Recorde-se que é o título nacional do Pantaboxbol que vai estar em disputa. O Pantaboxbol, como é sabido, ten vindo a tornar-se nos últimos tempos, para além da arte marcial suprema, o desporto predilecto das massas. Isso deve-se muito provavelmente ao facto desse desporto reunir em si as regras e possibilidades de todos os desportos. Os atletas podem fazer uso de quaisquer equipamentos de quaisquer outras modalidades, o que confere um garrido e espectacularidade ímpares. Aliás, na escolha do equipamento adequado reside quase sempre o requisito para o bom ou mau sucesso no combate. Tradição, essa, reconheça-se, que já remonta à Ilíada.
Ora,o confronto desta noite não é excepção. Para o primeiro round, adivinham-se já as tácticas, a avaliar pelos arreios. Assim, Gonçalo Lapada, o Tio, parece apostar na estabilidade defensiva, envergando um par de esauis e empunhando um taco de golfe, tamanho 5; já o seu adversário, Tony Pimba, o Pato bravo, alardeia intençõesde maior mobiliade ofensiva, calçando um par de patins em linha e arvorando na mão direita um bastão de basebol. É claro que tudo rodopiará em paradas e contra-paradas, estocadas e contra-estocadas, ataques e defesas, à procura duma brecha para o golpe fatal. O público, adepto e conhecedor, sabe perfeitamente que, a limite, o Tio tudo fará para conseguir aplicar o seu golpe mais mortífero e decisivo, ou seja, o já lendário "estalo"; enquanto, por seu turno, o Pato Bravo manobrará no sentido de tentar uma aberta para desfechar com o seu famigerado e letal "cachucho".
Entretanto, o árbitro olha mais uma vez para a mesa do júri, enquanto os lutadores recebem as últimas instruções dos treinadores e são refrescados e afagados pelos massagistas. Gonçalo, o Tio, depois de complicado embrulho com o equipamento por causa de se ajoelhar, escuta com atenção beata as palavras do padre melífluo que, além de treiná-lo, também o abençoa, confessa, absolve de todos os pecados e entoa, a culminar, um Lhe Deum de vésperas de pancadaria; enquanto o massagista, jurista de profissão e momentanemente acólito, lhe faz chegar a hóstia galvanizante ás dentuças sôfregas. Enquanto, no canto oposto, Tony, o Pato Bravo, memoriza os planos maquiavélicos do seu deputado-treinador, ao mesmo tempo que vai emborcando copázios de tintol incentivante, que o carroceiro massagista (e historiador por conta) lhe atesta e despenha pela goela abaixo. Ambos, no entanto, vão adquirindo lampejos cada vez mais maníacos nos olhos e começam a mal disfarçar os tremores homicidas que lhe sacodem os membros. O Tio acaba mesmo, neste momento de proto-exaltação, por ter um ataque epiléptico dos tesos, o que, dados os esquis á mistura, não deixa de ser assombroso de se ver e também algo contundente para o seu próprio staf. O público, sempre atento, aplaude esta espécie convulsiva de Cata já tradicional neste atleta. O rival, por seu turno, não querendo ficar atrás, esmurra o peito peludo de cidadão atarracado e entoa roncos formidáveis de gorila maguila, aspergindo gafanhotos em todas as direcções e espuma esbranquiçada pelas comissuras ruidosos. A audiência, maravilhada, rompe em olés. Entusiasmado, o Pato Bravo, deriva para o fado vadio, numa variação de chimpanzé alarvemente nostálgico, o que, por osmose eniviesada, causa alguma comoção e lágrimas. E, logo de seguida, novo coro de olés, e "ah fadista!", por toda o pavilhão.
Entrementes, o Tio mordeu a língua à mistura com a hóstia e esperneou tanto que partiu um dos esquis nas costas do seu próprio treinador. Finalmente serenado, após várias cadeiradas na cabeça, recebe suturas e primeiros socorros, bem como uma excomunhão passageira que o presbítero ressentido (e opus dei famoso) não deixa de lhe aplicar, tem que, igualmente, trocar os esquis por uma prancha de surf. O clérigo, esse, fala-lhe agora de longe, com um megafone.
Mas eis que o árbitro convoca os dois lutadores ao centro, para se cumprimentarem e dar início ao combate. Isto acarreta algum embaraço. Por um lado, o Tio, em cima da prancha, não consegue mover-se por falta de ondulação; por outro, o Pato Bravo, desdestro  na patinagem, desembesta em cima das rodas e sai estatelado pelo lado oeste, depois de quase atropelar o juís da contenda, Este, apelando à sensatez e ao pragmatismo, opta por dar incício á partida, sem mais protocolos nem anteparos.
A multidão ruge, satisfeita. As claques rompem em tonitruantes mensagens de apoio e estímulo incondicional aos seus meninos, bem como sugestões argutas e exemplos urgentes de ordem táctica e operacional.
O combate, no entanto, apesar de oficialmente iniciado, tarda a iniciar-se. É que se o Pato Bravo teve a felicidade de ver a sua queda amortecida por vários cidadãos embasbacados, teve também a infelicidade conjunta de acertar numa área ocupada pela claque inimiga. A viagem de regresso ao ringue não deixa, pois, de ser atribulada e custa-lhe um certo número de escoriações e saliva a pingar pela cara abaixo. Felizmente, durante todo o tempo, conseguiu manter-se na posse do providencial bastão de basebol, com que, qual pioneiro da selva amazónica, lá foi abrindo caminho pelo matagal agreste. Mal acaba de transpor, a salvo, as cordas, e, legitimameente enraivecido, atira com os patins ao magote perseguidor. Sem mais delongas, com a ajuda do treinador, monta na bicicleta e troca a moca rachada por uma raquete de ténis.
Cá estão portanto, e até que enfim, os dois colossos frente a frente. Usando de idênticas técnicas, um de cima da prancha, o outro do alto da ciclocoisa, começam por insultar-se obscenamente, recorrendo a um vernáculo cabeludo, entre o erudito e o chunga. A fase, claro está, é ainda de estudo recíproco e reconhecimento selvaginoso. Mas há um impropério expedido pelo Tio que parece ter um efeito devastador. O Pato Bravo fica bravíssimo. Desata a guitar apopleticamente: "Agarrem-me! segurem-me, que eu dou cabo dele! Eu mato-o! Eu bebo-lhe o sangue todo!!... Segurem-me, senão eu desgraço-me!" Porém, da outra banda, o outro insiste e reforça. Repete os terríveis vocábulos e acrescenta sardonicamente: "Sim, é melhor segurarem-no, senão ainda lhe dou um estalo!"  Esta aparte cai que nem uma bomba. Apesar de já agarrado e acalmado pelo árbitro, pelo deputado, pelo massagista carroceiro e autarca municipal, e por vários espontâneos da assistência, Tony Pimba, o Pato Bravo, explode que nem um vulcão: "Ai, agora não há perdão! Vou massacrá-lo! Vou-lhe dar com este meu cachucho bem no alto dos cornos!! Larguem-me! Deixem-me ir a ele!!"  Os outros assim fazem e se o gongo afortunado não soasse para o fim do primeiro assalto, não se sabe bem que hecatombe geral poderia sobrevir.
Novamente nos respectivos cantos, donde curiosamente ainda não saíram (excepto para deambulações marginais à refrega), os dois magníficos desmontam dos veículos e sentam-se nos banquinhos. O Tio recebe sermões e conselhos proficientes do seu treinador, via telemóvel; enquanto, no canto defronte, o Pato Bravo atenta nas arengas do dele, e ingere um whisky duplo. O som do gongo para o segundo assalto vem já encontrá-los prontos para façanhas inéditas e traumatismos múltiplos. Um, o Tio, depois de ponderar o trampolim de ginástica, deixou a prancha de surf - pouco dinãmica, reconheça-se -, e optou por uma sela de montar com a respectiva égua adstrita; na mão esgrime agora uma raquete de squash. O outro, o Pato Bravo, pôs de lado a bicicleta e trepou na moto de água, levando à tiracolo um remo.
O público recrudesce nos incitamentos e cantorias. Que apocalipses nos reservarão os próximos minutos? Guardando o telemóvel, e empunhando novamente o megafone, o prelado Melífluo guia o seu prosélito à carga: "Dá cabo da besta meu filho! Morte ao Satanás, ao herege, ao Judas! Usa o escudo da fé!..." e assim sucessivamente.
Da outra banda, ao volante ufano da sua moto-de-água, o Pato Bravo recorre à sua injúria preferida e, em altos berros, coloca publicamente em dúvida a masculnidade do oponente. Apanhado em cheio, o Tio vacila mas, recapitulando toda a catequese, riposta com o mais desabrido e alucinado dos seus vitupérios: "Socialista!!"
Ambos os gladiadores estão agora deveras maltratados. Não admira, dada a violência dos golpes, que raiaram mesmo a ilegalidade regulamentar. O combate é interrompido, como mandam as regras, embora ninguém saiba bem quais. O árbitro procede a uma contagem de protecção aos dois atletas claramente zonzos. O Tio caiu até do cavalo abaixo (passe o excesso de preciosismo) e o Pato Bravo chora que nem uma madalena prostrado sobre a viatura de recreio. Num auge  visceral de fúria, por entre as lágrimas, o segundo dispara intempestivamente, à queima-roupa: "Ai é? Vou chamar o meu padrinho!!" O Tio não se quer ficar e ameaça com o tio dele. Das palavras aos actos é um instante.
Ante os clamores de grande regozijo por parte da turba apreciadora, eufórica com o resvalar da guerra convencional para o cataclismo nuclear, sobem ao ringue o Padrinho da Pato Bravo - o famigerado "Bimbo da Praça"; e o tio do Tio - o tristemente célebre "Filisteu das Berças".»

- in "Antropomaquia Lusitana, ou as Memoráveis Crónicas do Pantaboxbol"

quinta-feira, dezembro 13, 2012

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«As manadas existem, mas não existem só as manadas. Mais precisamente, o facto de existirem chusmas lemmings não significa necessariamente que toda a humanidade possa ser entendida, enfileirada e manobrada feita uma chusma lemming; como, de certa forma, o facto de existirem indivíduos não constitui prova suficiente de que todos os homens sejam indivíduos. A experiência tem demonstrado precisamente o contrário destas generalizações aberrantes, mas normatizadas e cíclicas. Por outro lado, sabe-se tanto da lógica ou da necessidade da existência do indivíduo, como da lógica ou razão de ser da manada. De resto,  apenas se comprova a existência de indivíduos exactamente no fenómeno oposto de existirem manadas: é que, decerto. não é indivíduos aquilo que constitui as manadas. A ideia peregrina de acabar com os conflitos entre manadas, convertendo tudo na mesma e acéfala manada global esquece esse pormenor, aparentemente insignificante mas deveras incómodo, de existirem os indivíduos. Quanto mais opressiva for a escuridão, mais intenso resultará o brilho da vela solitária. Como a massa Blobglob reagirá, a limite, àquilo que não consiga digerir e fundir, é ainda uma incógnita superficial. Mas, no fundo, adivinha-se...
Além do mais, e voltando atrás, a homogeneização germina e viceja no Terror: torna-se possível, senão necessária e indubitável, a um homem-aterrado, que já não trepa aos olimpos nem mergulha nos abismos, que já não sonha nem pensa para lá da superfície, quer enquanto espaço, quer enquanto tempo. Um hominídeo pragmático, utilitarista, com os pés bem assentes na terra. Um homem aparentemente em correria perpétua, em transportes de libertação, mas, na verdade, ancorado, enjaulado, parqueado, com toda a liberdade para correr dentro dos limites do parque. Cada vez mais a correria humana é uma correria de hamster. Ou de Sísifo. Um correria circuitante, recorrente, erosiva; uma tournée aos quatro cantos do seu presídio. Um Tour, ou melhor, um turismo do seu próprio inferno. Talvez seja essa a forma de o climatizar: se antes se encontrava degredado nele, doravante está só de visita, de passagem, de férias. Ou não fosse a actualidade a exibição confrangedora dum homem que tirou férias da sua própria essência.»

in "O Tratado da Besta"

«A mesma força que empurra o homem para a Ordem, catapulta-o contra a Desordem! E, o diabo se roa todo!,  não é uma questão numérica: milhares de abortos não fazem uma criança e, muito menos, um homem que seja! Por isso mesmo, este,  não tem que estar à espera que milhões de bestas cavalgaduras e bestas cavaleiras se dignem conceder-lhe o benefício da sua simpatia ou assentimento; chegada a hora, aceso o fogo, irrompe, nasce, ergue-se acima da lama, cumpre a força que o determina, a coragem que o incendeia, sem olhar para trás e sem esperar jamais que a lama o acompanhe ou a baixeza o eleve e exalte! O Homem não se ergue da bestialidade para a conduzir: levanta-se contra ela, como a estrela se acende contra as trevas do céu. É só um pontinho minúsculo e longínquo no meio dum infinito negro e vazio, mas é esse pequeno nada que brilha e guia o ser! Essa é a prova de fogo, a têmpera vulcânica que forja o gume olímpico e o aço inquebrável. Poisai a máscara, ó fariseus melífluos: É a mesma bestialidade cega que ergue a cruz para Cristo e a forca para o pirata. No fim, ambos sabem que estão, como sempre estiveram, sozinhos; que ninguém os segue na ascensão que conta, no momento da verdade, porque a humanidade não se imita, nem se aprende, nem se ensina: é-se, vive-se, de pé, sem medo nem vaidade. Não, pelos tomates de Aquiles!, o homem não se subleva: ergue-se; mesmo sabendo, especialmente sabendo, que é para caminhar para o cadafalso, seja esta a cruz do Nazareno, seja a forca do pirata! Porque diante de Deus,  aos olhos perscutantes do Cosmos que tudo vê e julga eternamente, vale mais uma morte de homem que uma vida inteira de réptil! A morte dum homem é o preço pela sua vida; a vida do réptil em figura de gente é uma vida tão desprezível e insignificante que nem preço tem!...»

- Retirado do "Sermão de Não-São Iceberg aos Tubarões" (Capítulo IV duma determinada obra que me compete acabar antes que este rilhafoles acabe comigo).




terça-feira, dezembro 11, 2012

Lisbon Sunset



O tempo de escrever para o boneco e falar para as paredes está a chegar ao fim. Outro tempo, um tempo mais antigo e demiúrgico prevalece: o tempo de voltar a escrever para o baú. Gastei nove anos da minha vida a falar aos presentes. Não me poderão acusar nunca de não ter pago tributo. De não ter descido à polis. Resta-me agora sacudir o pó das sandálias e, se voz alguma tenho ou pena me resta, ir falar aos vindouros. Eu e, mais do que eu, os antepassados que em mim reverberam.
"Esperos", no grego, significa isso mesmo: entardecer, poente, oeste. E, todavia, é nesse entardecer, nesse findar da luz que nasce a esperança - a espera pela manhã de um novo dia. Por isso se diz (digo-o eu, pelo menos) que a esperança, na etimologia tanto quanto na vida, é filha do crepúsculo. É assim, é cíclico, eterno. imune e inexorável. Desde o princípio dos tempos...  Se é que no Tempo o princípio e o fim se destrinçam.

sábado, dezembro 01, 2012

O Mostrengo (r)




Escrevi-o aqui, em janeiro de 2005, e está mais actual que nunca. 

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O MOSTRENGO

«O mostrengo que está no fim do mar
na noite de breu ergueu-se a voar;
à roda da nau voou três vezes
voou três vezes a chiar,
E disse:" quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo
mus tectos negros do fim do mundo?»
E o o homem do leme disse, tremendo:
»El-Rei D.João Segundo!"
- Fernando Pessoa, "Mensagem"

A figura do mostrengo é eloquente. Ainda hoje brame, para quem o quiser ouvir. Ainda hoje apavora quem o escuta e, pelo zoar do seu estrugir desumano, o imagina envolto em fiapos de tormento e cortinas de pesadelo.
Em Quinhentos, nesse tempo de coragem, de Audácia, mais que de ganância, os mares ressumbravam, infestados. Ao longe, nos oceanos, que iam vomitar-se lugubremente no abismo tartárico, senão na goela insaciável do próprio inferno em chamas, uivavam abominações medonhas, habitavam pavores inomináveis. Sob o manto vertiginoso das águas, moravam braços descomunais, tentáculos mortíferos, mandíbulas escancaradas prontas a devorar, a varrer e a despedaçar, sem dó nem piedade, a casca de noz e o insecto que se atrevessem, que experimentassem a viagem, que ousassem sequer o pensamento. Enfim, emboscados, sempre à espreita, famintos de dor e carne humana, cardumes de horrores patrulhavam os mares ignotos. Para quem escondia os olhos –como hoje ainda esconde -, o mostrengo era tudo isso. Escutava-se e dava vontade de nunca ter nascido.
Mas, na verdade, o mostrengo não habitava os mares: rodopiava fantasmagórico na alma dos homens. Tolhia-lhes o ânimo e quebrantava-lhes a força. E chiava –oh, com que tenebror ele chiava! - a enregelar o coração e a liquefazer a espinha. Que até os dentes crepitavam, os cabelos encaneciam e o chão nos chamava, em refúgio, para o mais humilde e obscuro dos seus orifícios.
Só que havia uma semente - uma centelha de odisseia - que Ulisses deixara por estas bandas. E uma semente pode muito. Mais que todos os medos. Mais que todas as filosofias, literaturas e ciências! Mais que a treva e os abismos. Porque uma semente sabe o caminho do céu. Rompe a lama e as angústias, fende os ares e as neblinas e estende os braços, feita árvore, a abraçar a luz e o firmamento. A saudar o sol e as estrelas. A respirar o sopro divino que dá vida ao mundo.
As sementes são a lenha dos sonhos. Os portugueses de Quinhentos foram a carne dessa semente.
E do chão agreste, triste, sujo e escuro, onde o medo os agrilhoava e mantinha encarcerados, rasgaram horizontes e elevaram-se para uma luz que os guiava a sul de todos os crepúsculos, à procura de edens e fontes sagradas, em busca de tesouros, de aventuras, de terras exóticas, mas, acima de tudo, ou como estrela guia para tudo isso, do mais bem-aventurado e exótico de todos os tesouros: a verdade.
Foram banhar-se no sonho e no abismo. Foram para o mar enfrentar o mostrengo que levavam na alma.
Guardamos essa memória nas veias e sabemos que não foi fácil. Sabemos que não foi uma coreografia sonoplástica e narcótica, como os filmes de hollywood. Que não foi insípido e inodoro. Que o cheiro a merda e sangue, a escorbuto e malária, a desespero e desinteria se misturaram muitas vezes, quase sempre, com o perfume da maresia, que entra pelos pulmões e descongestiona a alma. Que as lágrimas das mulheres salgaram o cais e as maldições dos velhos crismaram o vento. Que isso toldou o horizonte e açulou o mostrengo que de dentro de nós –nós naquele tempo – assombrava o mar.
Mas nós –nós naquele tempo – nós sem automóveis, televisões, figoríficos, nós sem electricidade nem água canalizada, nós sem subsídios nem peritos de pintelhices a granel, nós sem doutores da mula russa a parirem reformas de empreitada, nós sem formação profissional nem confortos, sem sindicato nem segurança social, nós sem computadores nem cinemas, nós sem petróleo nem diamantes, fomos capazes de uma obra colossal, fomos capazes dum milagre, a semente fez-se árvore.
Nós –naquele tempo muito mais magros, destituídos, ainda mais indigentes e pequenos que hoje – fomos capazes. Porque é que hoje não somos? Não somos capazes porque nem sequer somos nós. Entre aquele tempo e este tempo interpôs-se um limbo onde vagamos quais sombras penadas. Sobra-nos a matéria, o esterco que nos amortalha; sobram-nos bugigangas em catadupa, adubos, pesticidas e cuidados de flores de estufa, mas falta-nos o essencial: a vontade, esse gume afiado do espírito. Falta-nos aquele que a vaca da Isabel Católica, ao saber da sua morte, disse: “Morreu o Homem”
Mas não apenas o homem-rei, símbolo de um povo, da união sagrada entre terra, mar e gente, e duma vontade colectiva; também, e sobretudo, o Homem dentro de todos nós, o homem que sonha, o homem que navega, o homem que acredita.
Porque em vez dele, a velar o seu sono forçado, soltando peçonha e susto, reina o mostrengo. Adeja, rodopia e chia sem parar. Entoa a sua umbrífera lengalenda, que cobre, como uma névoa tóxica, venenosa, o sol e as estrelas, e entranha-se nos ossos, nos músculos, nas mentes, a roubar-nos toda a coragem, a decantar-nos toda a esperança.
“Sois fracos!”, chia ele, escarninho. “Sois débeis! Sois poucos! Sois pobres! Sois atrasados! Sois obsoletos! Sois a escória da Europa! Sois vis! Sois preguiçosos! Sois desgovernados, desorganizados, viciados, dependentes, individados, mesquinhos, intriguistas, fala-baratos, quezilentos, alarves, pacóvios...sois o desespero de Cristo!...” As suas asas negras esvoaçam por cima de nós, sombrias e, à noite –nesta infinita noite em que se tornou a nossa vida-, pressentimos que ele poisa, de colmilhos afiados, para nos vampirizar os sonhos. Mas mesmo nessa pausa hedionda, a sua cantilena exasperante não cessa: repercute em ecos descarnados, lutuosos, nas abóbadas do nosso pavor.
Mas que pensáveis vós que ele, esse mesmo mostrengo chiante, uivava há quinhentos anos atrás? -A mesmíssima gosma paralizante, a gémea baba de aranha dissolvente. Sem tirar nem pôr.
E os homens - daquele tempo em que ainda havia homens - deixaram para trás as lágrimas das mulheres, as maldições dos velhos, o espanto maravilhado nos olhos das crianças e saíram mar a fora, levando todo o medo consigo, e foram enfrentar a ululante avantesma lá onde o mundo acaba e o abismo começa. Saíram as naus da barra e o mostrengo infame ia por cima delas, como uma sombra de Outro-Mundo.
Choraram as mulheres porque viam ambos, praguejaram os velhos porque viam a abominação, maravilharam-se as crianças porque eram seus os sonhos que iam dentro dos homens, com a forma de mastros e velas.
Os homens não voltaram. Só o mostrengo voltou.

«O mostrengo que está pra cá do mar
Na noite de breu continu’a voar;
Por dentro da alma voa mil vezes
Voa mil vezes a agoirar,
E diz: “quem persiste ainda a sonhar
Com algo que não meu trono execrando
com céus acima deste pó imundo?
E a nau sem leme geme, sangrando :
”Quem há-de vingar D. João Segundo?...”