sábado, março 28, 2015

A Acromiomancia Revisitada - XI. O Modo Português




«E temos de baratear a guerra, se não esgotamo-nos, e não aguentamos. E aqui dentro não se teria paciência.»
- A.O. Salazar (a Franco Nogueira, 25 de Agosto de 1965)


«Os capítulos anteriores demonstraram que existiu uma abordagem especificamente portuguesa da contra-insurreição, que se baseou com sucesso nas suas forças e que derivou de uma estratégia nacional de poupança dos seus limitados recursos. Portugal transferiu esta parcimónia para as políticas e práticas, ao nível táctico e de campanha, que lhe permitiram dirigir uma guerra continuada e de longa duração no Ultramar entre 1961 e 1974. Uma análise das crónicas da época revela-nos que Portugal adoptou um estilo de contra-insurreição diferente do de outros países, que lhe permitiu superar os principais desafios geográficos e os recursos limitados, bem como deter os movimentos nacionalistas. Este modo português centrava-se num estilo de combate contido e de baixa intensidade, que era função dos seus recursos restritos e da sua fraca tecnologia. Portugal soube desde o início que ia combater uma longa guerra e, portanto, teria de combater bem e barato, de modo a conseguir sustentar o conflito.
(...)
Desde o início, Portugal tinha conhecimento de que não haveria soluções imediatas para a sua situação em África, e avançou de modo a favorecer forças e evitar fraquezas. Conquanto tenha perdido as suas colónias, não as perdeu por razões militares.
(...)
Reorganizou o seu exército em pequenas unidades de infantaria ligeira. Este género de força era o mais eficaz e comprovado em campanhas de contra-insurreição, uma vez que mantinha o importantíssimo contacto com a população enquanto se combatiam bandos de guerrilheiros de pequenas dimensões. A infantaria ligeira é também o tipo fundamental de força militar, dada a sua simplicidade e baixa potência de fogo. É também menos provável que aterrorizer a população, intimidando-a com a utilização maciça de poder de fogo.
(...)
A infantaria portuguesa não só perseguia o inimigo, como também cativava a população. Participava simultaneamente em projectos sociais que elevavam o padrãonde vida das pessoas e oferecia uma alternativa tangível às promessas dos insurrectos.
(...)
Além disso, as populações locais foram recrutadas para o combate em números significativos. Esta africanização da contra-insurreição servia para afastar as pressões de recrutamento na metrópole, reduzir despezas de transporte e empenhar as populações locais na sua própria defesa.
(...)
Portugal procurou empregar métodos e equipamentos relativamente simples, que pudessem ser facilmente compreendidos e utilizados pelas suas forças, de acordo com a baixa tecnologia da guerrilha. A alta tecnologia não era necessária para enfrentar os guerrilheiros, e empregá-la na contra-insurreição aumentava exponensialmente os custos de combate, com apenas uma pequena margem de ganhos em efectividade.
(...)
Os portugueses reuniram cuidadosamente a informação sobre contra-insurreições, reduziram-na a um plano de defesa para as suas colónias e consignaram-na numa doutrina escrita para as Campanhas, O Exército na Guerra Subversiva. Este trabalho descrevia ao exército a natureza do inimigo e os métodos que deviam ser utilizados para o derrotar. Esta instrução era fora do vulgar, na medida em que os britânicos e os franceses só tardiamente se incumbiram de escrever a doutrina da sua contra-insurreição, quando já combatiam há algum tempo.
Os soldados portugueses eram enviados para a batalha sabendo de antemão como supostamente deveriam alcançar a vitória.»
-  John P. Cann, "Contra-Insurreição em África, 1961-1974"

Como definir o "modo português" de fazer a guerra de contra-insurreição partindo de um exemplo actual? É simples: estão a ver como os Americanos  combatem o terrorismo?
Pois bem, o Exército Português era exactamente ao contrário.
Em vez de andar com uma turbo-marreta caríssima e sofisticada a tentar matar uma mosca, Portugal usava um mata-moscas, e se pudesse capturar a mosca viva, tanto melhor.
O facto de não dispormos de imensos recursos e altas tecnologias conferiu-nos a vantagem de não embarcarmos em soberbas genocídas. O facto de termos a "comunidade internacional" contra nós e não ao nosso serviço, impediu-nos de entrar em autismos perigosos ou pura aleivosia bélica.
Resultados do combate americano ao terrorismo?. Absurdos, no mínimo. Guerrilha ou terrorismo combatidos por americanos  não diminuem: proliferam, reproduzem-se e multiplicam-se. É um facto indesmentível e verificável.
Porque a diferença fundamental entre o modo português e o modo americano é óbvia: uma vez que o terrorista se procura diluir na população, alvejá-lo com a marreta resulta em que o embate acabe por massacrar mais a população do que o terrorista. Ao fins de vários massacres, a população está mais farta dos libertadores do que dos terroristas, e em vez de ganhar aversão ou resistência ao terrorimo, desata a aderir ao mesmo, quando não  a desenvolver outras formas alternativas e ainda mais virulentas. Ou seja, ao não perceber que a luta contra o terrorismo se ganha ou se perde na medida em que se separe o terrorismo da população, os americanos, ao tratarem tudo por atacado, ocasionam o efeito contrário ao desejável: as fontes de recrutamento do terrorismo aumentam exponensialmente à intervenção, gerando o tal absurdo em que, tudo somado e manifesto, ao terrorismo, mais parece que o cultivam do que o combatem. O que, de resto, no nosso peculiar caso de Angola até se verificou literalmente: os americanos patrocinaram a UPA (são responsáveis morais pelos massacres do Norte de Angola), minaram o mais que puderam o regime de Salazar e as próprias Forças Armadas (através da evangelização dos oficiais que, ao abrigo da NATO, iam aos Estados Unidos completar cursos de aperfeiçoamento - saíam de lá "democraticamente aperfeiçoados"), ao financiarem  no pós-25 de Abril a extrema-esquerda de modo a gerar o maior caos possível e os entraves conhecidos aos embarques para o Ultramar. Esta acção metódica e cavilante de sabotagem do tremendo esforço político-militar português, contribuiu significativamente  para o enfraquecimento das nossas defesas contra o inimigo declarado e ostensivo - as forças soviéticas e seus satélites metropolitanos e ultramarinos. O armamento russo equipava o PAIGC, o MPLA e a FRELIMO (em concurso com os chineses), a União Soviética (e a China) apoiava o Terceiro Mundo, também politicamente, na ONU, na sua luta contra o infame colonialismo. A Guerra Fria demarcava na Europa os dois blocos antagónicos. E, todavia, os americanos, quando vendiam armamento mais sofisticado aos portugueses, faziam-no com a condição expressa e imperiosa de estes  não poderem utilizá-lo nas acções militares em África. . Quer dizer, destinava-se a combater os soviéticos  na Europa, mas não podia ser usado, nem por sombras, para combatê-los em África. Ou seja, só podia ser utilizado para combatê-los onde, de facto, não havia combate. Isto diz tudo do "aliado" americano.
Não obstante, contra ventos e marés, os portugueses lá foram levando a carta a Garcia. Não apenas o exército teve um comportamento extraordinário nas três campanhas, como a própria Pide/DGS desempenhou missões altamente meritórias e serviços relevantes ao esforço nacional de contra-subversão. Como refere John P. Cann,  «na penetração nos países-santuários onde os movimentos nacionalistas se refugiavam, agentes fronteiriços eram normalmente controlados pelo exército, e agentes em missões mais longínquas eram controlados pela PIDE. A competição entre as várias facções dentro dos movimentos originava uma fissura que fazia multiplicar os informadores e encorajava os agentes. Os membros descontestes dos movimentos provaram ser uma fonte fértil de recrutamento e uma oportunidade para a PIDE lançar as sementes da dissenção. Na Guiné, o PAIGC "sofria com as pressões internas entre a liderança mulata cabo-verdiana e a africana guineense, facto naturalmente explorado pelos portugueses.
O principal movimento nacionalista de Moçambique, a FRELIMO, esteve em declarada competição com as forças nacionalistas rivais até 1972, não só pelos patrocínios externos, mas também pelo domínio do movimento. Adicionalmente, dentro da FRELIMO existia uma dissidência entre os adeptos do socialismo revolucionário e os conservadores. Estes encontravam-se isolados e seguiram o seu líder, Lázaro Kavandame, que se aliou aos portugueses. (...) Os movimentos nacionalistas angolanos passavam a maior parte do tempo a lutar entre si e, assim, havia pouca união no esforço de guerra. Os portugueses eram muito bem sucedidos no explorar destas divergências e a causar deserções, facto que levou René Pélissier a comentar, em 1971, que "as redes da PIDE e os informadores portugueses no Congo-Kinshasa são equivalentes no seu efeito a uma divisão de pára-quedistas no solo"»
Mas então se a coisa até foi bem conduzida no terreno o que é que falhou? Se, como reconhecem até autores ingleses, por norma pouco pródigos em elogios a terceiros, «os militares portugueses conseguiram uma vitória clara em Angola, um impasse digno de crédito na Guiné e, com alguns meios adicionais e uma liderança forte, poderiam ter readquirido o controlo da zona setentrional de Moçambique», para que raio foi aquela debandada súbita e atabalhoada, mais semelhante ao estampido de uma manada do que à retirada seja de quem for, ainda mais em se tratando de militares?

Para já, há um mito da propaganda abrileira que, duma vez por todas, cai pela base: a guerra não estava perdida, não era insustentável e progredia até no bom sentido. Portanto, não foi por causa disso.
Falhou então, concretamente, o quê?
Falhou a retaguarda, falhou Lisboa, falhou a Metrópole. Ao mesmo tempo que nós fomentávamos dissenções e clivagens nos nossos inimigos africanos, alguém as explorava e inoculava também entre nós, ao nível político, ao nível social e no interior das próprias Forças Armadas. Socorro-me da analogia do organismo e dos agentes patogénicos. Os agentes patogénicos existem e sempre existirão, desta ou daquela cor, desta ou daquela maneira. Porém, o que barra o caminho à doença e ao colapso são as defesas naturais do próprio organismo. Em 1974, a responsabilidade maior pelo que sucedeu, por acção desenfreada dos agentes patogénicos, deve ser assacada a toda uma acção debilitante e corrosiva das defesas - uma acção metódica, porfiada e insidiosa.

Citando uma passagem dum postal meu de 2007, muito a propósito:
«...o paradigma manteve-se. Apenas mudou de hospedeiro: os jacobinos também acreditavam piamente que os poucos podiam aperfeiçoar os muitos. Regra geral e imperatriz, cortando-lhe a cabeça em excesso, quando não mera redundância da tripa. O seu projecto, aliás, era duma audácia exuberante: importava arrancar aquela cabeça cheia de ideias más e implantar em seu lugar uma outra atestada de ideias boas. Infelizmente, a guilhotina, esse magnífico instrumento, só resolvia a primeira parte do programa. Foi preciso esperar pela segunda metade do século vinte para que finalmente surgisse uma máquina capaz do programa completo: a televisão.»








Sem comentários: