quinta-feira, abril 30, 2015

Narcisocracia (r)



Somos uma nacinha em banho-maria. A derreter em lume brando. Mergulhados numa democracia a todos os títulos engenhosa e notável: temos governos que desgovernam e oposições que se desopõem. Que regime, afinal, será este? Se é democracia, escapa a todos os paradigmas conhecidos: não é popular, nem liberal. Muito menos grega. A chamar-lhe alguma coisa, fora o palavrão que geralmente merece, teremos, por simples amor à realidade, que chamar-lhe democracia autista ou narcisocracia. Um regime em que os governantes se governam e os opositores não se opõem ao governo porque estão muito ocupados a oporem-se uns aos outros. Quer dizer, o governo governa-se a si mesmo e as oposições opõem-se a si próprias.
E o mais espantoso é que em redor deste colossal vulcão de coisa nenhuma, alucinados com a mais diversa ordem de micro-roedores enfezados que a montanha, a cada minuto - pelos interstícios do vácuo - ameaça parir, zumbem e abivacam, todos os dias, sem pausa nem fastio, enxames de jornalistas, comentaristas e blogadeiros, cardumes de politólogos, sociólogos, psicanalhistas e outras excelsas tricotadeiras da palha, cada qual mais buliçosa e compenetrada, na análise convulsiva do Chico, do Manel (agora também Manela) e do Francisco, traduzidos directamente do angolinglês das respectivas eructações, babas e demais decantações, estalactites e alambicagens do momento. Mais que espantoso, é fantástico!
Dir-me-ão que gastar o dia de roda de futebóis é estúpido. Sem dúvida. Se bem que gastá-lo de volta deste circo de abortos, toucinhos e carcaças não é apenas estúpido: é macabro, imundo, necrófago... e grotesco.

quarta-feira, abril 29, 2015

Acromiomancia Revisitada - XXIV. - Os ventos do Mercado, ou A Lebre e a Tartaruga




«The 1972 Stockholm conference created the necessary international organizational and publicity infraestructure, so that by the time of the Kissinger oil shock of 1973-74, a massive antinuclear propaganda offensive could be launched, with the added assistance of millions of dollars readily available from the oil-linked channels of the Atlantic Richfield Company, the Rockefellers Brothers' Fund ond other such elite Anglo-Americanm establishment circles. Among the groups whitch were funded by these people at the time were organizations including the ultra-elitist World Wildlife Fund, then chaired by the Bilderberg's Prince Bernhard end later by Royal Dutch Shell's John Loudon.
Indicative of the financial establishment's overwhelming influence in the American and British media is the fact that during this period no public outcry was heard about the probable conflict of interest involved in Robert O. Anderson's well-financed antinuclear offensive, and the fact that his Atlantic Richfield Oil Co. was one of the major beneficiaries from the 1974 price increase of oil. Anderson's ARCO had invested tens of millions of dollars in high-risk oil infrastructure in Alaska's prudhoe bay and Britain's North Sea, together with Exxon, BP, Shell and the other Seven Sisters.
had the 1974 oil crisis not raised the market price of oil to $11.65 per barrel or thereabauts, Anderson's investments in the North Sea and Alaska, as well as those of British Petroleum, Exxon and the others, would have brought financial ruin. To ensure a friendly press voice in Britain, Anderson at this time purshased the London Oserver. Virtually no one asked if Anderson and his influencial friends might have known in advance that Kissinger would create the conditions for a 400 per cent oil price rise.»
- William Engdahl, "A Century of War"

Independentemente do design e confecção da coisa, o facto é que um aumento de 400% no preço do petróleo, para países grandemente consumidores, como eram as principais economias europeias, constitui um tremendo choque. Decorrente dum inevitável aumento nos custos de produção, sucedem aumentos de preço nas mercadorias e, no caso português, num tempo em que as importações desmesuravam, acontecem fenómenos muito desagradáveis e desestabilizadores. A inflação, logo à cabeça.  Como o próprio Marcello Caetano explica no seu Depoimento:
«A inflação começou assim a afligir o governo, tendo atingido em 1972 uma taxa ao redor dos 10%. (...)Em 1973, nos três primeiros trimestres fez-se um esforço de contenção dos preços: mas no último trimestre desencadeou-se a crise da energia e das matérias-primas com os seus efeitos amplíssimos sobre os custos de quase todos os bens. Uma nova onda inflacionária varreu o mundo ocidental. Estávamos a braços com ela quando veio a revolução.»
É precsiso notar que o embargo petrolífero resultante da guerra do Yom Kippur, não atingiu Portugal com o impacto com que agrediu outros países ocidentais. Tinhamos uma vantagem: o petróleo de Angola. Marcello refere-o:
«A existência de petróleo de boa qualidade e em apreciável quantidade em Angola dava-nos grande segurança que, por ocasião da crise do Médio Oriente, permitiu encarar com serenidade o bloqueio dos países árabes.
Os contratos de exploração dos jazigos angolanos conferiram ao governo a faculdade de, em caso de emergência, requisitar a produção deles para o consumo nacional; assim se fez, com plena compreensão das empresas concessionárias.» (in Depoimento, pp.108)

Não obstante, por via duma tendência perversa que já vinha de trás e dos tais aumentos disparados nas importações, a coisa gerou um mal-estar generalizado e um ambiente de crescente descontentamento (até porque os portugueses não estavam habituados a solavancos abruptos daquela natureza).
Segundo Caetano, as origens das tendências inflacionárias radicavam em três causas principais; "o aumento da emigração para o estrangeiro, a repercussão das despesas militares no consumo interno e a inflação que começava a acelerar-se no mundo inteiro e que, num País importador em larga escala, tinha de ser importada também." Mais tarde também o fluxo turístico e a inflação no ramo imobiliário.
Quanto aos efeitos da inflação na economia e, inerentemente, na sociedade, Marcello também é claro e objectivo:
«É sabido quanto a inflação favorece a inquietação política e a agitação social. De entrada é estimulante da vida económica. A abundância de dinheiro provoca o incremento dos rendimentos individuais e dos consumos, a procura cresce constantemente, o comércio não tem mãos a medir e transmite à produção as suas mensagens optimistas. Há um ambiente de excitação alegre resultante da circulação de tanto dinheiro e das oportunidades que ela oferece. Mas tudo isto vai bem enquanto os governos conseguem controlar a situação. Porque a partir de certo momento, se o fenómeno se mantém, a inflação, de rastejante converte-se em galopante, toma o freio nos dentes e é ela que descontrola todos os mecanismos e funções da economia nacional. Perante a subida constante dos preços e a correspondente desvalorização da moeda deixa de ser possível fazer planos e contratos a médio prazo, sequer. não convém conservar dinheiro líquido, o que importa é convertê-lo em bens que se não depreciem com o tempo. A velocidade da circulação da moeda aumenta, o mercado torna-se frenético, a bolsa endoidece, os bens supérfluos, ouro, obras de arte, antiguidades, são sofregamente procurados: quer-se ter nas mãos qualquer coisa em lugar do dinheiro.
Mas quando se atinge este ponto começa a ser difícil conter as reivindicações salariais: se o custo de vida está sempre a subir, o trabalhador sente o seu poder de compra diminuir, e quer conservar pelo menos o que tinha. Pretende aumentar, mesmo, esse poder de compra, visto á sua roda notar a existência de tanta gente a gastar a até a esbanjar dinheiro. Em época de pleno emprego são então constantes os conflitos entre patrões e trabalhadores e os agitadores encontram fácil receptividade para a sua acção.» (in Depoimento, pp. 102)
Como era óbvio, e quem viveu aquele tempo, como é o meu caso, sabe-o de experiência própria, a situação tinha entrado em descontrolo económico. A medalha do sonho descobria o seu reverso. Mas como se chegara ali?


Marcello Caetano tentara dinamizar a economia através da liberalização. No tempo de Salazar, as coisas, e mesmo a industrialização, avançavam devagar ou a velocidade moderanda, procurando passos graduais e jogando pelo seguro. Salazar, que tinha apanhado um país na completa bancarrota - que nunca é apenas económica, mas também social, moral e política - sabia bem do que, ao mínimo desleixo ou fantasia, poderia lá conduzir de novo. Caetano, mais desembaraçado e optimista, elucubra no seu Depoimento:
«Disse uma vez que a prova mais provada da incapacidade da iniciativa privada em Portugal estava no que se tinha passado durante o governo do Dr. Salazar. Os empresários tiveram nesse período dinheiro oferecido nas condições mais favoráveis da Europa (a taxa de desconto do banco de Portugal era das mais baixas, e foi por vezes a mais baixa, sobre ela assentando as taxas da banca comercial); mão-de-obra abundante, um regime tributável favorável e protecção às empresas com interesse para o País dada à sombra do condicionamento industrial. Alguma coisa que se fez na indústria foi graças a esse conjunto de condições: mas ele era de tal modo favorável que justificaria um florescimento extraordinário de novas indústrias bem diferente do moderado desenvolvimento verificado. (...) As circunstãncias proporcionaram ao meu governo uma viragem forte na política económica» 
Em suma, Caetano assume  que não se andou depressa o suficiente e pretende acelerar o processo. O que enceta, da forma que melhor entende, e que concisamente pode ser descrita nas suas próprias palavras:
 «O dinamismo que o governo imprimiu à sua acção, a reforma educativa, a multiplicação das obras, o alargamento dos quadros, tudo isso ia implicando uma expansão de despesas públicas favorável ao aumento da quantidade da moeda em circulação.» (ibidem, pp.101)
Agora, para aqueles que têm uma certa dificuldade em entender português, eu traduzo:
a) "O Dinamismo" - em contraposição  à moderação anterior
b) "Reforma educativa" - Desde Caetano, todos os governos, sobretudo os do PS, avançam com uma; aliás, o autor da Reforma Educativa de Marcello (por sinal, péssima), Veiga Simão, até transitou para o PS;
c) "Multiplicação das obras" - obras públicas (betão, alcatrão, etc)
d)"Alargamento dos quadros" - Aumento no número de funcionário públicos
e) "Aumento da quantidade de moeda em circulação" - aumento da inflação

Àquela velocidade, quanto tempo demoraria Marcello a chegar à bancarrota? O  Monstrengo do Estado começava a avantajar-se; a carga tributária acompanhava em conformidade...Afinal, que liberalização era aquela?
E todavia a acção de Caetano era a muitos títulos meritória. Comparado aos desgovernantes dos últimos quarenta anos, além de probo, era um homem com consciência dos problemas. O que eventualmente lhe permitiria, caso tivesse tido tempo para isso, arrepiar caminho ou corrigir destemperos. E foi um facto que, à luz do tal "crescimento económico", Portugal crescia a olhos vistos.
 O senão é que  Marcello apostou na dinamização económica a expensas da prudência política (neste caso, o inverso do Dr. Salazar).  Caetano herdou as boas finanças de Salazar, mas não lhe herdou a clarividência prevenida.  Por isso, quando  lhe desabou o choque petrolífero em cima, o sonho, que já vinha experimentando alguns sinais alarmantes, virou pesadelo. Nem sempre ir muito depressa é ir muito bem. Mas não fora esta prenda americana  dos amigos do costume, Caetano corria sérios riscos de modernizar o país ao ponto de tornar inúteis todos os seus peregrinos sucessores. Incluindo a adesão paulatina ao Mercado Comum europeu. Até vou mais longe, sem o ambiente decorrente do choque petrolífero, dificilmente a recepção popular ao golpe do 25 de Abril teria sido tão lorpa e festiva. Estamos, mais uma vez, no campo das puras influências externas, que sobrevoam e superam os protagonistas nacionais...
Não obstante, também ao nível do jogo de forças económicas interno acontecem episódios significativos. Marcello Caetano refere um, bastante especial, que envolve, a propósito da herança Sommer, António Champolimaud, na altura a maior fortunna cá do sítio. Nas palavras de Caetano:
«Voltando á liberalização industrial não podíamos estar à espera das leis para ir abrindo o mercado e quebrando monopóliosde facto que por lá andavam instalados. O Engº Rogério Martins lançou-se com entusiasmo na promoção de novas iniciativas em diversos sectores. Num deles, porém, a sua acção desencadeou reacções que na altura da revolução o governo estava a sentir manifestarem-se com violência e que não sei mesmo se, de um modo ou outro, não terão contribuído para que o movimento revolucionário deflagrasse: o dos cimentos.» (in Depoimento, pp. 118)
Depois da revolução Nacional de Oliveira Salazar, uma revolução suave, tínhamos agora a revolução industrial do professor Marcello, uma revolução agitada, em que o viver habitual cedia lugar ao clima de excitação pública (Um Estado cuja função crucial, aliás, é excitar a economia...). Em relação a Champolimaud, Marcello prossegue, mais adiante,  no relatório:
«O industrial a que há pouco me referi estava então a ser julgado à revelia num processo escandaloso movido por um irmão e que interessou vivamente a opinião pública. os advogados do industrial, todos da extrema-esquerda, por sinal, acusarm o governo do Dr. Salazar de ter perseguido o acusado, por haver procurado simplificar e abreviar a longa e complexa instrução decorrida na Polícia Judiciária. Mas que diriam os advogados socialistas se o governo tivesse dado a impressão de não deixar fazer luz sobre as acusações formuladas a um plutocrata pela sua própra família!
O julgamento teve, pois, lugar na altura própria e não contribiu pouco, pelo escândalo levantado, pela inépcia do juíz presidente e pela demagogia dos advogados para a criação dum ambiente desfavorável ao capitalismo.(...)
Ora, quando o industrial foi absolvido no tribunal criminal, em 1973, e regressou ao País, resolveu pedir contas ao governo por, ao conceder as duas licenças para as fábricas de cimentos do Norte e do Sul [nota: quebrando assim o monopólio de Campolimaud nas cimenteiras], "o ter prejudicado no seu património". E vá de encetar uma campanha a insinuar irregularidades e favoritismos na concessão dessas licenças. Quando num diário pró-comunista me constou que ia sair uma entrevista do industrial, cheia de insinuações e de ataques pessoais (mão a mim) fiz saber-lhe que estava errado o caminho adoptado. Com essa atitude de ressentimento ia prosseguir uma obra de descrédito do sistema económico-social, descrédito de que ele viria a ser vítima também; quando era mais inteligente enterrar o passado e olhar com entusiasmo o futuro.» (idem)
O que é deveras interessante, já agora, é saber quem foram os tais advogados de Champolimaud naquele processo... Os nomes?  Proença de Carvalho e Palma Carlos (ambos expulsos pelo juíz em pleno processo); depois Salgado Zenha.
Posto isto, finalmente percebo um evento ocorrido em casa de Ramalho Eanes, logo nos meses subsequentes ao 25 de Abril de 1974, era Palma Carlos o Primeiro-Ministro. Quem o refere  é Diniz de Almeida:
«Em Agosto de 1974, na sequência dum convite feito ainda em Maio desse ano a Champolimaud para que este apresentasse um plano de fomento industrial, Hugo dos Santos apresentará a alguns oficiais um interlocutor autorizado que adiantará pormenores sobre o assunto, que envolvia um empréstimo por parte do Estado de cerca de 120 milhões de contos...
tal reunião, que teve um carácter restrito e particular, realizou-se em casa de Ramalho Eanes, contando entre outros com as presenças do cap. de cavalaria Ferreira e do major de cavalaria Monge.
Será ainda este último que vivamente indignado com a exposição, objectará:
- Isto é um projecto capitalista... e eu não fiz o 25 de Abril para isto...
Neste particular, o capitão Ferreira apoiá-lo-á discretamente. A falta de unanimidade na aceitação de tal plano não permitiria que se tirassem então conclusões definitivas sobre o assunto.» (in Ascensão, Apogeu e Queda do MFA, pp. 141)
Entretanto, Marcello Caetano ficou convencido que o plutocrata teve realmente influência nos acontecimentos:
«Dizem-me que o industrial asseverava a quem o queria ouvir o seu propósito de "deitar abaixo" o governo. Conseguiu. E os seus advogados social-comunistas lá estão agora com a revolução a combater os monopólios...» (in Depoimento, pp 119)

E acrescenta mais achas para a fogueira do descontentamento (ou incompatibilidades várias) dos "industriais portugueses":
«Mas houve uma outra espécie de reacções á perspectiva de liberalização económica imposta, como disse, pela aproximação do termo do proteccionismo, em consequência dos acordos da EFTA e por força do acordo posterior com o Mercado Comum o que me referirei mais adiante. Essa reacção foi a da venda das empresas a grandes grupos estrangeiros, em muitos casos multinacionais. 
O industrial português não se sentia com ânimo para enfrentar a competição externa e por outro lado as empresas multinacionais tinhm interesse em ocupar posições em Portugal, onde as condições de produção pareciam favoráveis e donde se desvendavam mercados interessantes na África e na América do Sul. De modo que surgiu a procura de estabelecimentos fabris que muitos empresários portugueses, encantados com os preços oferecidos e a comodidade da vida antegozada, se apressaram a vender.» (idem)
Parece, pois, que grande parte dos empresários portugueses não estava devidamente mentalizada e motivada para a "revolução industrial" de Marcello. O que, da parte deste,  redunda num lamento sentido: «não fiquei com muito respeito pela maior parte da alta burguesia do meu país...»

A alegre excitação económica dos primórdios das reformas Marcellistas deu lugar a um ambiente de turva excitação política, montado numa sinistra desagregação moral que, carburada em várias áreas e catalizada por fim com a ventania externa do "mercado a regular-se" acabou por descambar no que descambou.

Pena que não tenha escutado o aviso, nem seguido o preceito do antecessor:
«Não gostamos de criar situações provisórias. Quando damos um passo em frente queremos que esse passo fique dado, que não se desmanche imediatamente com um passo à retaguarda.» (A.O.Salazar)

Ora, com a pressa em chegar à Europa social-democrata, Marcello Caetano acabou por descobrir-se não um passo atrás, mas dois, ou seja, não de regresso ao Estado-Novo, mas de charola à 1ª República.
Era, aliás, uma das fábulas constantes num dos  Livros de Leitura da Instrução Primária do tempo de Salazar: a Lebre e a Tartaruga.


PS: Duas notas finais, nas palavras de Marcello, a primeira muito "antecipadora":
«Uma palavra ainda sobre a política tributária, na qual procurei não apenas obter recursos, mas utilizar o imposto como meio de contenção de acumulação de riquezas e processo de redistribuição de rendimentos»;
E a segunda, infelizmente, remetendo para a primeira citação em epígrafe, que recomendo que leiam (ou releiam) com extrema atenção:
«Quanto à energia eléctrica, estavam em vias de esgotamento as possibilidades de aproveitamento hídrico (...) Para 1980 estava prevista a entrada em exploração da primeira central nuclear. Os estudos achavam-se muito adiantados, não só para essa primeira central como para as que se lhe haviam de seguir.»


terça-feira, abril 28, 2015

De cabeça levantada



«Pondo de lado tudo o que pode ser considerado arte de jornalista no inquérito e ainda, aqui e além, curiosidades de menor monta, são visíveis as duas grandes preocupações do autor. Confesso que elas me divertiam um pouco pela insistência com que eram postas, embora reconheça que traduzem as maiores dúvidas do grande número. A primeira pode exprimir-se assim:
Este homem que é Governo, não queria ser Governo. Foi deputado; assistiu a uma única sessão e nunca mais voltou. Foi ministro; demorou-se cinco dias, foi-se embora e não mais queria voltar. O Governo foi-lhe dado, não o conquistou, ao menos à maneira clássica e bem nossa conhecida: não conspirou, não chefiou nenhum grupo, não manejou a intriga, não venceu quaisquer adversários pela força organizada ou revolucionária. Não se apoia aparentemente em ninguém e dirige-se amiúde à Nação, entidade bastante abstracta para apoio eficaz. Tem todo o ar de lhe ser indiferente estar ou ir; em todo o caso, está. Está e há tanto tempo e tão tranquilamente como se ameaçasse nunca mais deixar de estar. Suporta os trabalhos do Governo, sofre as injustiças,os insultos dos desvairados, os despeitos, as raivas dos impotentes. Vai engolindo, de quando em quando, a sua conta de sapos vivos, comida forçada de políticos, segundo pretendia Clemenceau. E está, e fica... Mas o problema, a dúvida continuam no mesmo pé. Aquele que não foi toda a vida candidato ostensivo à governação, que não sacrificou a esse objectivo todas as energias do seu ser, que a si próprio se não proclamou capaz de dirigir, de mandar, de executar e fazer executar um programa de governo, seu ou alheio, que considera o Poder mais como um dever de consciência que como direito a usufruir pela força da conquista, - de onde lhe vem, se não é filha da ambição de mandar a força de vontade necessária para não ficar a meio caminho? de que se alimenta o ânimo no trabalho, na luta, para não mostrar abatimento, desânimo, vontade de desertar?
Não sendo eu o autor do inquérito, não me cabe a mim desfazer estas dúvidas e esclarecer este ponto. Entretanto formulo, por desfastio, algumas hipóteses.
[Hipótese nº1]
As últimas dezenas de anos são na História Portuguesa de decadência profunda; esta atingiu, pode dizer-se, todas as manifestações da vida nacional, a produção, a cultura, a administração pública, a política. No entanto, examinadas mais de perto as coisas, verifica-se que esse abatimento não proveio da absoluta carência de homens. Nas artes, nas ciências, no ensino, no jornalismo, na indústria e na agricultura, na colonização, afirmaram-se ou trabalharam simplesmente, ignorados, alguns valores de primeira ordem. Por outro lado, nós não podemos fugir, sobretudo num país da formação do nosso, a que seja o Estado quem represente efectivamente a Nação, aos olhos de portugueses e aos olhos de estranhos; dele vem a orientação superior, a organização e disciplina dos indivíduos, a sequência da vida nacional. A expressão desta é mais ou menos alta e digna, conforme a elevação do próprio Estado. Sem que desconheçamos ou menosprezemos inteligências, capacidades, esforços, boas vontades, aliás primeiras vítimas dum estado de coisas deplorável, o Estado português esteve longe de dignificar sempre Portugal. Quero dizer: se a Nação não correspondia aos seus valores individuais, o Estado era ainda inferior à Nação. Uma falta de organização, de enquadramento, de direcção superior deixava as melhores unidades inaproveitadas ou improdutivas, cada qual se queixando de um mal que sozinho não podia suprir e não se unindo espontaneamente a outros para o fazer cesar.
De facto, enquanto a nossa educação for o que é, o poder público há-de ser sempre a mola real da vida e progresso do País, e consequentemente o grande responsável da sua inferioridade ou decadência. Ora, o cuidado que devia haver na organização do Estado, na sua adaptação às realidades e necessidades nacionais, no recrutamento dos valores a quem se havisa de confiar a administração e a política, esse cuidado, mercê de circunstâncias que não vale a pena examinar, nem sempre o houve - não é verdade? -e por isso a nossa expressão ou representação nacional não foi sempre feliz e sobretudo não foi justa: tínhamos mais e melhor.
Todos os que temos, pela inteligência, pela voz do sangue ou simplesmente pelo instinto do coração, a consciência da nossa unidade e independência, da nossa grandeza passada, da nossa colaboração na obra civilizadora da Europa, dos nossos interesses actuais na África, na Ásia, na Oceania, sentimos - ferida aberta na alma - o riso mundial, a troça dos povos em nada superiores a nós, a não ser na sua linha exterior, por causa da nossa agitação revolucionária, da nossa incapacidade governativa, das nossas irregularidades de administração, do nosso atraso e do nosso descrédito. Temos sido, numa palavra, enxovalhados e vexados. Ora há portugueses suficientemente orgulhosos da sua qualidade de portugueses para sentirem tudo isto como afronta pessoal, e para, chegada a ocasião, tirarem do seu orgulho ferido a paciência, a tenacidade, a força necessária para procurar implantar no País a ordem e a boa administração, fomentar o progresso material, revolucionar a educação e dar à Nação e à sua política um tal aprumo e dignidade que possam reconquistar para Portugal o bom nome e o respeito de todos. Esses portugueses sabem que, sem exageros, sem agressividade, sem declarar quixotescamente guerra ao mundo, os países, como os indivíduos, podem, pelo seu trabalho e pelas suas virtudes, ter direito os pobres a estar diante dos ricos, os pequenos diante dos grandes, de cabeça levantada e até de chapéu na cabeça.»




Esta longa citação, em epígrafe, foi escrita por Oliveira Salazar no ano de 1933. Podia um outro qualquer português digno desse título escrever hoje a segunda parte (referente à hipótese formulada) que estaria plenamente actual e retrataria com fidelidade intensa o drama colectivo do nosso país neste nosso tempo. É que mesmo os nossos interesses em África, embora sob outras roupagens, condicionantes e enquadramentos, continuam. E não são pequenos, como nada no horizonte estratégico duma nação  é, a não ser para alminhas microscópicas. Como estas que nos desgovernam e todos aqueles que as  apaijam em miniatura gelatinosa e coro invertebrado.

segunda-feira, abril 27, 2015

Acromiomancia Revisitada - XXIII. Nem Rei nem Grei




«Calcule o senhor que os integralistas lusitanos me exigiam que restaurasse o trono como condição de colaboração. Disse-lhes que havia duas maneiras de fazer a monarquia: de cima, com o Rei, ou debaixo e de dentro fazendo o que o rei faria e restaurando-o depois. Ora a primeira solução era impossível: não havia ambiente nem força política porque a República efectivamente se incrustrara no país. Ficava portanto a segunda solução, porque a primeira arrastaria a minha queda e a deles todos. Pois não quiseram, e incompatibilizaram-se comigo. Zangaram-se o Pequito Rebelo, o Sardinha, o Hipólito Raposo, que tão mal escreveu de mim. Tudo boa gente: o Pequito Rebelo lá anda em Angola a prestar bom serviço. Mas os monárquicos fugiram-me. Eu disse-lhes que tinhamos feito uma constituição já preparada para a Monarquia. Da República, a constituição conservava três coisas: a bandeira, o hino e o nome: o resto era facilmente afeiçoável a um estado monárquico. Pois não quiseram. Foi um disparate e agora não há rei.»
- A.O. Salazar (a Franco Nogueira, em 30 de Maio de 1966)

É uma acusação séria que se ouve regularmente contra Salazar. Que, ao contrário de Franco, não teve a prudência, a sensatez e a visão de restaurar a Monarquia. Eu estou firmemente de acordo que a Monarquia deve ser restaurada, sob pena de Portugal desaparecer no ralo da história em boa velocidade. Embora não acredite nisso como uma espécie de panaceia ou pó mágico que, só por si, recoloque tudo nos eixos - e quando digo tudo é literalmente tudo. Mas temos que ser também nós justos e sensatos nas exigências: decerto Salazar não tinha esse Poder absoluto e milagreiro (mais super-poder até que poder) de restaurar por decreto ou varinha. Ou havia o esforço concertado e profícuo dum escol, ou nada feito. Ora, o que Salazar declara é que ficou sem o tal escol. E seguramente, a não ser que o absurdo constitua lei, não era sem os monárquicos que restauraria a monarquia. Eventualmente, poderemos então acusá-lo, com severidade, que falhou porque não conseguiu convencer, converter, ou obrigar os republicanos à ideia e, logo de seguida, ao facto. O tal absurdo, já se vê. Rir-se-iam os republicanos: "então este cavalheiro nem os monárquicos convence e quer-nos convencer a nós?!..." Mas, às vezes, fico com a sensação que é mesmo essa a essência da acusação que lhe fazem.
E, todavia, não foi por desinteresse, alheamento  ou falta de empenho da parte de Salazar que a coisa não se efectivou. As relações de Salazar com a Rainha Dª. Amélia eram as melhores. Houve contactos, por intermédio do Dr. José Nasolini (em representação de Salazar junto da rainha) em que alvitrou a restauração da Monarquia. Santos Costa chegou a sondar o Marechal Carmona nesse sentido (este respondeu com prudência, alguma abertura, mas depois teve a triste ideia de falar no caso a Cabeçadas...). A lei de Proscrição e Banimento da linhagem de D.Miguel foi destituída pela lei 2040, em 1950. O  Pretendente da Coroa, D.Duarte Nuno, neto de D.Miguel veio viver para Portugal, de modo a que, entre outros aspectos, o príncipe fosse educado entre nós. Em 1967, os restos mortais de D.Miguel regressaram a Portugal e foram depositados, em cerimónia de Estado, no convento de S.Vicente de Fora.
Só que, entretanto, o rei D.Manuel II havia falecido em circunstâncias súbitas e bizarras (asfixiou com um edema da glote), o que reavivou a disputa entre monárquicos, inflamando legitimistas, integralistas e constitucionalistas (litígio, diga-se, que nunca tinha deixado de crepitar) . Todavia, e dado que o falecido não deixava descendência, a coroa passava para os descendentes de D.Miguel (mas aqui, era a própria rainha Dª Amélia que tinha que se aclimatizar à nova situação)... Enfim, tudo isto para referir a complexidade e multiplicidade de factores em jogo. Mesmo Paiva Couceiro, um herói e símbolo da monarquia, já de provecta idade e agitado sabe Deus porque espírito-santos de orelha, entendeu desferir epístolas desabridas, infundadas ( e até, como se veria adiante, verberando acusações altamente injustas) a Salazar (a principal era que este não queria saber de Angola, o que estaria a fomentar independentismo), arranjando maneira de se auto-excluir do processo.
Ora, esta perpetuação da pugna cismática, por muito justificada que fosse, não contribuiu em nada para a boa resolução do assuinto. Já antes do Estado-Novo, os integralistas e legitimistas proclamavam a qualquer constitucionalista que os quisesse ouvir, que não contassem com eles para se baterem pela pseudo-monarquia. Também, pôr-se Salazar a referir uma "constituição afeiçoada à Monarquia" a iintegralistas, ou seja, a indivíduos que não nutriam qualquer afectividade pela constituição, também não seria o mais galvanizante dos estímulos. E note-se que eu, que escrevo isto, também considero D.Pedro um usurpador traidor e miserável cuja estátua no Rossio me impede sequer de cruzar aquela praça, por nojo insuportável e vertigens de dinamite. Contudo, há alturas em que que as desavenças fratricidas têm que ser suspensas e ultrapassadas em prol dum bem comum. Esse, de resto, é o principal drama nacional: o permanente ambiente de rixa doméstica, sobre tudo e uma palha. Donde resulta o estado crónico e cíclico, por entre esporádicos intervalos a contra-maré, de uma nação que passa o tempo em luta consigo própria e a derrotar-se a si mesma. Mesmo a relação peganhenta com o estrangeiro nada mais congrega que um expediente atávico: o do sectário (em acto ou potência), ávido e militante, na recolha de munições, sejam elas de índole mental ou material,  para arremessar e regurgitar na imarcescível zaragata interna. Tão pouco se pode falar em guerra civil permanente: trata-se simplesmente de violência doméstica compulsiva. Do governo contra os governados; dos governados contra os desgovernantes; dos desgovernados uns contra os outros; dos eleitos contra os eleitores; etc, etc. Mesmo as eleições, além de fictícias e falsárias, mais não constituem que vazadouros colectivos para raivas, ódios e ressentimentos acumulados. Ninguém faz campanha por coisa alguma, programa credível ou ideia concreta e acabada: é sempre contra qualquer coisa, ameaça, conspiração ou perigo iminente. O pai contra a mãe e a mãe contra o pai -mãe e pai do descalabro, da bulha instalada e sempreviçosa, entenda-se - com a filharada em ricochete e  a ascendência em apneia . Vence aquele que conseguir denegrir, delatar e de alguma forma achincalhar, com mais injúrias, ínfâmias e menoscabos o adversário. No fim do fétido sarrabulho, diante da urna, menos de metade dos eleitores inscritos, que por qualquer requinte  de morbidez ou sadismo ainda se digna comparecer, divide-se entre a flagelação ao mais detestado ou o descargo de consciência cívica no menos imundo.                                                                                                                                                                        
Voltando a Salazar... Não deixa este de referir que, embora de candeias avessas consigo, todos aqueles integralistas eram boa gente. Não obstante, em 1958,  nos anteparos da intentona de 1959 contra o regime, acontecem algumas movimentações conspirativas que aparecem descritas pelo Coronel  Fernando Valença, na sua obra "A Abrilada de 1961" (e numa perspectiva anti-salazarista), a páginas 94:
«É um facto que em 1958, quando foi decidido não reconduzir o marechal Craveiro Lopes na presidência da república, houve realmente contactos deste e do general Botelho Moniz (mas indirectos) com um grupo de militares e civis que pretenderam opor-se àquela ideia e provocar um forte reformismo no regime. (...) O general Botelho Moniz, ainda Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas é contactado então por intermédio de dois oficiais do Secretariado-geral da Defesa Nacional, os majores Pedro Cardoso e Viana de Lemos.»          
Antes de prosseguir, uma breve nota sobre estes dois oficiais... Um, o major Viana de lemos já é nosso conhecido - era o subsecretário do Exército de Marcello Caetano, à altura do 25 de Abril. O tal que acompanhava as reuniões do Movimento dos Capitães e era amigo íntimo de Costa Gomes. Já o major Pedro Cardoso, também coronel à data de Abril de 74, participará no MFA e tornar-se-á o homem das Informações do regime democrático. Está por detrás da lei dos serviços secretos e respectivas dinâmicas. Em síntese, é o criador do SIRP e suas subdivisões, o SIS e o SIEDM.
Mas o Coronel Valença prossegue:
«Os dois majores, com o conhecimento do general Botelho Moniz, foram a uma reunião em casa do Dr. Pequito Rebelo, onde se encontravam monárquicos e esquerdistas. Ali se viam os capitães Vaz Pinto, Varela Gomes, Ramires, Vicente da Silva, Ferreira Pinto, Almeida Santos, Francisco Morais e Ribeiro Simões, que nessa época seria a ligação com o general Lopes da Silva, e o major Calafate.»
Que raio, então é mais difícil os monátrquicos entenderem-se entre si do que conspirarem com esquerdistas?
Só o tal Varela Gomes é todo um hino.Antifascista frenético, comanda o assalto ao quartel de Beja (intentona planeada por Humberto Delgado para derrubar Salazar), em 1962; reintegrado no pós-25 de Abril, com a patente de coronel; terá sido ele, mais a distinta esposa e insigne militante do PCP, quem tratou da transferência de vultuosa quantidade de ficheiros da PIDE/DGS para o Partido Comunista e posteriormente para a KGB/Moscovo; acolitou Vasco Gonçalves e comandou a célebre 5ª Divisão (da Dinamização Cultural); fugiu depois do 25 de Novembro para Angola e, na velhice, vai escrevinhando livros de propaganda onde mima a actual democracia (burguesa), imagine-se, com epítetos amorosos do estilo "filofascista".

Como dizia Alguém há mais de dois milénios: é preciso usar de extrema prudência e parcimónia nos juízos.

Mas vamos imaginar que Salazar até restaurara a Monarquia. O que é que nos garante que, no dia 25 de Abril de 1974, juntamente com o regime não iria de novo o Rei? Aliás, como pode ler-se muito bem descrito a propósito do 5 de Outubro:
«Já em 5, pela manhã, Paiva Couceiro ainda ataca de novo. Mas às 7 horas o representante diplomático alemão pede uma trégua para retirar os respectivos súbditos da cidade. Nas suas deslocações para parlamentar, usou uma bandeira branca no automóvel... e o equívoco gerado por esse símbolo no Quartel General provocou um efeito semelhante ao rebentamento de um colector gigante! Civis e militares misturaram-se, já nem se sabia quem era "quem" e o "quê". Foi o fim. O esgoto impôs-se, vasando sobre o carácter dos homens. Surge a sofreguidão de aderir, como aconteceria, muitos anos mais tarde, em 25 de Abril de 1974. Chamou-se-lhe, em 1910, o fenómeno dos adesivos.»
- (Fernando Amaro Monteiro, in "Salazar e a Rainha") 

                                                                                                                    

domingo, abril 26, 2015

Prognografia II



04 de Outubro de 1966 - «Prolongada entrevista depois com o embaixador dos Estados Unidos. pela primeira vez, uma pequena fricção: mas tudo acabou em sorrisos de parte a parte. Tese americana é sempre a mesma: eles defendem a liberdade do mundo, e portanto de nós todos, e fazem grandes sacrifícios para isso, e assim todos lhes devemos estar gratos; nós, portugueses, defendemos estreitos interesses de Portugal, o que é absolutamente secundário, e fazemo-lo de uma forma que é contrária aos ventos da história e dos interesses daquele mundo que os Estados Unidos defendem; estamos deste modo a prejudicar tudo, e até a nós próprios, devendo por isso estar reconhecidos àqueles, como os americanos, que sobre nós exercem pressões para que mudemos de política e entremos num caminho benéfico para a humanidade. É assim. Dizem exactamente a mesma coisa que os russos: também querem libertar o homem, em toda a parte, à custa dos maiores sacrifícios. Não se sabe o que se há-de fazer a tanto altruísmo.»
- Franco Nogueira, in Um Político confessa-se (Diários 1960-1968)

«!4 de Outubro de 1966 - Afigura-se que a lógica dos Estados Unidos é esta. desde que se trate de destruir em África os valores propriamente europeus e tradicionais, os Estados Unidos entendem de seu dever estar por detrás de de quem o fizer;  e a sua convicção parece ser a de que, depois de bem destruído tudo, então os Estados Unidos poderão tomar conta de tudo, expulsando o russo da costa ocidental enquanto os ingleses expulsarão o chinês da costa oriental. Aos belgas, portugueses, franceses, ficarão os cinco por cento da praxe. isto deve ser assim - mais coisa, menos coisa.»
- Franco Nogueira (idem)

«30 de Outubro de 1967 -  (...) em conversa até de madrugada em casa de Luís Teixeira Pinto. Este e o Fernando Cruz dizem-me: "Não tenha dúvidas, os progressistas não lhe perdoam, odeiam-no." Digo que não tenho dúvidas mesmo nenhumas. E a mulher do Fernando Cruz acrescenta em reforço: "Outro dia, atacaram-no na minha frente com tal violência que eu até o defendi." Beatriz é oposicionista confessa.»

«Washington, 15 de Novembro de 1967 - Mais uma vez o State Department. Dean Rusk, sempre compreensivo, e mesmo afectuoso. Quer apaziguar tudo, desdramatizar; e falámos mais do futuro. Neste particular, Rusk não oculta o seu pensamento: se Portugal se mantiver em África, e disso convencer os Estados Unidos, então os Estados Unidos vão rever a sua posição, e adaptar-se doutrinariamente, sem ofensa dos seus princípios, nos apoiarem. Vasco Garin, que me acompanha, também assim o entende. Ao outro dia, avisto-me com Katzenbach, novo subsecretário para África, que encontro pela primeira vez. Fico siderado. Dos problemas do mundo, não tem a menor noção. Dos de África, ainda menos. Do que é África, do que é a sociedade negra, do que é o anticolonialismo, dos interesses em luta, das implicações de uma política ou outra, mesmo do significado das palavras no contexto africano, de tudo isto e muito mais, o novo subsecretário não possui a mais remota das ideias. Durante uma farta hora, foi um diálogo estúpido: nada do que dizia Katzenbach fazia sentido, tudo o que eu dizia esbarrava numa parede de incompreensão e sem ressonância. Se eu estivesse a falar para uma bilha de barro ou uma porta, não seria outra a sensação. Uma hora perdida. Mas o grave é que este homem é conselheiro do governo dos Estados Unidos para os assuntos africanos.»
- Franco Nogueira, ibidem

Entre nós, portugueses, a importação que mais prejuízo e défice causa ao país é, sem sombra de dúvida, a da estupidez. Se ao menos fizessemos como com o crude petrolífero, que  importamos, refinamos e depois exportamos com mais valias, ainda vá. Mas não, à estupidez,  importam-na, enriquecem-na, aprimoram-na e consomem-na toda. Sofregamente. Virou toxicodependência. Assim não vamos a lado nenhum. 


sábado, abril 25, 2015

Acromiomancia Revisitada - XXII. Centuriões e Decorativos




Depois do 11 de Março, o PREC entra em modo turbo. O Verão Quente de 75 é prenunciado em 28 de Maio com a rusga do COPCON (em larga medida foi o regimento de Comandos que desesempenhou a tarefa)  pelas sedes do MRPP e subsequente detenção de cerca de 400 militantes daquela força política (não sei se Durão Barroso foi dentro nesse dia, mas, se não foi, tenho imensa pena). Os operários educandos do Grande Educador foram arrecadados em Caxias e no Pinheiro da Cruz, para desgosto de Otelo que propugnava por deportá-los prás Berlengas (não estou a brincar). Aliás, a ideia das Berlengas como Luso-gulag foi debatida e tinha em vista a criação dum parque para recalcitrantes ineducáveis (o que era estranho nos MRPPs, já que o seu chefe coincidia com o Grande Educador - grande e, pelos vistos, improfícuo).
A extrema-esquerda era, de um modo geral, agitada pelos americanos para agranelar o MFA e hostilizar os comunistas. É da praxe e até corriqueira a manigância e, dados os crânios em desfile, funcionava com relativo sucesso. Otelo vivia assessorado  pelos PRP's de Isabel do Carmo; e o RALIS (a unidade revolucionária por excelência, segundo confidências de Leal de Almeida quando assumiu o comando), era um centro de convívio de MRPP's, LUAR's, UDP's, etc. O certo é que a coisa resultou na esquizofrenização do MFA revolucionário em duas taras rivais: a facção Otelo e a facção Vasco Gonçalves. Para estes, Otelo, sob o seu aparente "guevarismo", era, na verdade, um anti-comunista primário. E há um episódio pitoresco onde ele próprio assim se proclama... Acontece no seguimento do saneamento do Coronel Jaime Neves e de vários oficiais no Regimento de Comandos, em 30 de Julho de 1975, por manobra de inspiração Gonçalvista e levada a cabo por quadros esquerdistas daquela unidade. Otelo insurge-se (Jaime Neves, no meu modesto entender, exercia um certo fascínio sobre Otelo, que via nele o operacional destemido que gostaria de ser ) e determina-se a repor Jaime Neves no comando do regimento. Ao major Tomé, ruge: "Isto é uma golpada do PC e eu não alinho em jogadas partidárias..." E ao próprio Vasco Gonçalves verbera:
-"Sou anti-comunista... Tornei-me anti-comunista... Não perdoo o que os gajos fizeram ao Jaime Neves... Hei-de dar cabo deles!... Qualquer dia vou à televisão e jogo as minhas estrelas contra eles!..." E reforçou, com ênfase: Vou à Televisão e digo que o povo de Rio Maior já deu o exemplo e nessa altura não serão apenas 3 ou 4 sedes do PCP queimadas...nem 30...serão 300 ou mais!..."O certo é que, num comunicado do COPCON de 04AGO75, Otelo ordena a readmissão dos oficiais e sargentos saneados e o procedimento de disciplina militar contra os saneadores.
Jaime Neves, que não era um ingrato, retribuir-lhe-á o favor, semanas adiante, dias antes do 25 de Novembro, quando um sargento "comando" se propõe liquidar liminarmente Otelo ( e tê-lo-ia feito sem dificuldades nem hesitações de maior, posso certificá-lo). Responde Jaime Neves: "- Não, isso não!... Ele é maluco, mas não é mau de todo... Não é preciso matá-lo! É preciso é pô-lo fora de serviço!..."
E assim escapou Otelo a ficar isento de certas maçadas posteriores, nomeadamente em barra de tribunal.
O caminho para o 25 de Novembro, entretanto, fica solidamente pavimentado quando, em fins de Outubro, se procede ao passo determinante no Regimento de Comandos: através da Associação de Comandos, são convocados ex-"comandos"  do Ultramar, gente de reconhecida fidelidade , com os quais se forma um novo batalhão - o Batalhão 12. O que, em termos operacionais, praticamente duplica o poder de intervenção e choque da unidade.
Isto, não sem que antes, em fins de Setembro, através de manobras palacianas, o Processo Revolucionário se tentasse desembaraçar de Jaime Neves  e dos seus "Comandos". O general Fabião, ante a recusa da Polícia Militar em embarcar para Angola, a fim de supervisionar os últimos dias antes da entrega, tentou que embarcassem os "Comandos". O que, por um lado, era capaz de ter tido consequências interessantes... Basta relembrar que, nesse mesmo verão, em 27 de Julho, uma companhia de Comandos portugueses, naquele que terá sido o último gesto digno do nosso exérvcito, em retaliação contra o assassínio de um alferes português por tropas das FAPLA (forças armadas do MPLA), tinha arrasado o posto de Comando central daquele Movimento, em Vila Alice, abatendo vários dirigentes, militares e avulsos que lá se encontravam. Imagine-se o que teria sido o regimento completo naquelas paragens... Provavelmente, teriam que adiar a Independência, por falta de receptores. Este episódio (que mesmo entre as tropas "Comando" ficou emerso em névoas de lenda, havendo discussões se foi uma companhia que vinha castigada de Moçambique se uma enviada da Metrópole quem cometera o feito  -todos os que não participaram, incluindo eu, ficaram sempre com uma certa inveja), aparece estudado, em documento acessível na Net, pela  antropóloga Margarida Paredes, do qual retiro dois breves trechos extremamente sugestivos:
Sobre o enquadramento geral da acção: «Nos últimos anos da guerra, guerra  que os portugueses chamam de Colonial e os angolanos de Luta de Libertação, os ventos da história e das independências africanas sopravam contra Portugal, o país era condenado internacionalmente pela ocupação colonia e a ditadura projectava Portugal no mundo como uma país periférico, subalterno e atrasado. (...)Aos dezanove anos, em 1973, tomei a iniciativa de aderir ao MPLA (...)»
Sobre a acção propriamente dita : «A reflexão enquadra esta acção militar num quadro de violência colonial ligada a arquétipos predominantemente masculinos e a paradigmas de masculinidades transversais e a hierarquias de raça e género destinadas a humilhar e inferiorizar os africanos»

Posta esta retrospectiva masculina em contra-vento, regressemos a Jaime Neves, na Metrópole, estava ele a ser empandeirado para Luanda. Em resposta a Fabião, Neves diz que vai falar com os oficiais da unidade. Perante estes, conclui: "nunca cairei na armadilha de sair do continente, pois eles (os esquerdalhos) depois já não me deixariam entrar...e até são capazes de me bombardear à chegada ao aeroporto, no avião de regresso...»
E assim os "Comandos" não embarcaram (para alívio do MPLA e futuro regalo dos nossos democratas parlamentares, que puderam montar a tenda depois do 25 de Novembro).
Mas a esquerda não desarrmou. Alguém  alvitrou ao general Fabião, numa reunião: 'A única maneira de salvar a Revolução é colocarmos de vez, oficiais de confiança nas Unidades de força... e o Jaime Neves poderá ser transferido do Regimento de Comandos e substituído por um oficial de confiança... 50 Chaimites entregues a um inimigo declarado é demais, meu general!...»
-"Deixem-no lá estar! Ao menos ali está vigiado - retorquiu Fabião - prefiro-o ali, porque ali, ao menos, ele está enquadrado! tenho muito mais medo dele se for fazer guerrilhas para o Nordeste Transmontano, do que se estiver no regimento de Comandos...
Aqui, Diniz de Almeida, repudia o argumnento e insiste:
«- Não posso concordar com o meu general! jaime Neves apenas é perigosos enquanto comsandante do regimento de Comandos, pelo potencial blindado que o Otelo e outros responsáveis, inexplicavelmente, lhe deram.»
-"Não!...Não!... prefiro-o no Regimento do que nas florestas a fazer guerrilha - teimou Fabião» (in AScensão, Apogeu e Queda do MFA, pp.287)

Poucos dias depois, a 03 de Outubro, uma transferência de 3000 espingardas-automáticas G3 do Depósito Geral de Material de Guerra para o CIAAC é autorizada por Otelo.
Ora, o que é curioso é que esta Unidade era considerada contra-revolucionária e aliada dos "comandos". E era de facto. Tanto que as armas foram distribuidas , nas vésperas do 25 de Novembro, a militantes do PS, que coadjuvaram, a vários títulos, na noite do contra-golpe que acabou com o circo MFA. No PS da altura, convém dizer, aglutinavam-se elementos de várias procedências: desde sociais-democratas da farinha amparo a gente de centro-direita e até oriunda do antigo-regime,  que se  havia alistado por oportunismo e vira-casaquismo atávicos, ou, em muitos casos, para o combate possível aos comunistas (estes, os anti-comunistas, quase todos, foram abandonando, logo nas primeira eleições presidenciais); a cúpula, que a maçonaria já tomara de assalto (escovando logo no fim do verão de 74 as bases marxistas), era apoiada pela CIA e assumia-se como delegação dos ventos para a administração da futura Liliput. O que, com efeito, viria a acontecer.

O resto da história é conhecido. Concretizada a independência de Angola (depois das restantes províncias africanas)  a 11 de Novembro, já podia acabar a bandalheira. Já não era necessária.O objectivo do 25 de Abril estava consumado. Otelo foi dormir, o COPCON congelou, os comunistas trocaram a imunidade posterior e a via parlamentar pela posição de estátua compenetrada naquela noite, os "Comandos" receberam luz verde e acabaram com o circo da extrema-esquerda e com a bandalheira militar já em deriva SUV. Esclarecedora a resposta de Rosa Coutinho a Diniz de Almeida, quando este pedia apoio dos fuzileiros:  "quem se meteu nelas que se desenrasque!"
De resto, o 25 de Novembro foi bem sucedido pela mesma razão que o 28 de Setembro e o 11 de Março não foram. E não foi apenas porque os "Comandos" intervieram e eram temidos (se houvesse ordem para disparar, disparava-se sem hesitações)... Ou porque Costa Gomes apoiou (apoiou porque sabia que ia ganhar, e estava vingado o seu 13 de Abril de 1961)... Foi também porque os comunistas não dificultaram e a tripla aliança abençoou. Afinal, já tinham convertido Angola ao novo "Império ideológico" e passavam bem sem uma nova Cuba. E foi assim que, antes mesmo de socialistas guardarem o socialismo na gaveta, adquirimos comunistas que aderiram ao parlamentarismo. E ainda dizem que os portugueses não têm sentido da originalidade...e humor.

Do que dependesse de Jaime Neves e dos "Comandos" o resultado não teria sido exactamente este. E tanto assim era que o poder político, desconfortável, não descansou enquanto não separou Neves da sua Unidade. Como já não restasse Angola onde enviá-lo, uns anos depois, quiseram enviá-lo a General. O Coronel Jaime Neves mandou o Chefe do Estado Maior, general Garcia dos Santos, dar uma volta. Em resultado, foi punido. E preferiu passar à reserva a tornar-se brigadeiro de pacotilha. Como tantos, aliás, absolutamente vácuos, que por aí vegetam a expensas do erário público. Os "comandos", os "Comandos coloniais" sofreriam uma perseguição ressentida e incidiosa da imprensa "democrática" até  Dezembro de 1993,  quando foram finalmente extintos, para consolo e descanso de todas as delicadas consciências. Com eles desapareceu o último resquício dum tempo e duma guerra para a qual tinham protagonizado a única força portuguesa, de elite, especificamente concebida e treinada. Sim, e parafraseando a antropóloga luso-angolana, um arquétipo de masculinidade à deriva num país claramente amaricado, que, cada vez mais, maquilha a descida à sepultura com a saída, amaneirada, do armário.




PS: Sobressai, em tudo isto, um par de ambíguos que merece estudo aprofundado: Otelo e Costa Gomes. Ou então tudo se resume a um fenómeno repetido: Costa Gomes manobrou Otelo como antes tinha manobrado Spínola e Caetano.





Antes de Salazar




«O observador imparcial chega a uma conclusão inevitável: o país estaria preparado para a anarquia; para a república é que não estava. Grandes são as virtudes de coesão nacional e de brandura particular do povo português para que essa anarquia que está nas almas não tenha nunca verdadeiramente transbordado para as coisas! 
Bandidos da pior espécie (muitas vezes, pessoalmente, bons rapazes e bons amigos –porque estas contradições, que aliás o não são, existem na vida); gatunos com seu quanto de ideal verdadeiro, anarquistas-natos com grandes patriotismos íntimos –, de tudo isto vimos na açorda falsa que se seguiu à implantação do regimen a que, por contraste com a monarquia que o precedera, se decidiu chamar República. 
A monarquia havia abusado das ditaduras; os republicanos passaram a legislar em ditadura, fazendo em ditadura as suas leis mais importantes, e nunca as submetendo a cortes constituintes, ou a qualquer espécie de cortes. A lei do divórcio, as leis da família, a lei da separação da Igreja e do Estado – todas foram decretos ditatoriais, todas permanecem hoje, e ainda, decretos ditatoriais. 
A monarquia havia desperdiçado, estúpida e imoralmente, os dinheiros públicos. O país, disse Dias Ferreira, era governado por quadrilhas de ladrões. E a república que veio multiplicou por qualquer coisa – concedamos generosamente que foi só por dois (e basta) – os escândalos financeiros da monarquia. 
A monarquia, desagradando à Nação, e não saindo espontaneamente, criara um estado revolucionário. A república veio e criou dois ou três estados revolucionários. No tempo da monarquia, estava ela, a monarquia, de um lado; do outro estavam, juntos, de simples republicanos a anarquistas, os revolucionários todos. Sobrevinda a república, passaram a ser os republicanos revolucionários entre si, e os monárquicos depostos passaram a ser revolucionários também. A monarquia não conseguira resolver o problema da ordem; a república instituiu a desordem múltipla. »
- Fernando Pessoa,  "Da República"

Depois de Salazar, regrediu-se ao antes dele. Tão simples, torpe e balofo quanto isso. Com uma relevante e gigantesca diferença: amputação territorial.
Após o 25 de Abril não houve revolução nenhuma: tratou-se apenas duma salganhada intrinsecamente reaccionária, das forças latentes e conspirativas dos últimos 48 anos, sob patrocínio "aliado", que trataram de remeter o país à balbúrdia doméstica donde, com grande sacrifício e esforço, se  tinha tentado evadir.
A descrição de Pessoa do pós-5 de Outubro aplica-se que nem uma luva ao pós-25 de Abril.


Aproveito para declarar que na minha caixa de comentários bacoreja gente que merece integralmente o que resultou do 25 de Abril. Quando interrogo mentalmente o Criador sobre a necessidade de existirem carraças, percevejos ou animálculos parasitas e repugantes em geral, não obtenho resposta, mas presumo uma qualquer utilidade que me transcende. Sobre os comunistas, não preciso de incomodar o Criador, já que são obra doutro; pelo que interrogo o abismo. Até hoje não lhes vislumbrava qualquer utilidade ou benefício, bem pelo contrário. O que ia contra a minha própria teoria de que entre os homens não existe a capacidade do mal absoluto. Ultimamente, porém, pude constatar, com um certo alívio que, afinal, a minha teoria estava certa. Descobri que, mesmo dos comunistas, se extraiu e pode extrair algum benefício. E qual foi ele, perguntarão os meus leitores bípedes, com curiosidade pasmada. Pois, caros amigos, foi exactamente o de premiar condignamente o tipo de gente que rasteja nas minhas caixas de comentários. Deram-lhes o que eles mereciam e tanto procuraram. E espero, com algum requinte de gozo, que continuem a causar-lhes justa dispepsia e porfiada angústia, cevando-se, repimpadamente, na sua estupidez, pusilanimidade, e bifídia compulsivas, crónicas e, pelos vistos, incuráveis. Sempre se retira algum prazer desse insectódromo abjecto, onde se assiste à rixa doméstica entre a sida mental e a gonorreia do espírito.

Força, camaradas, aí o tendes, o vosso dia! Lambuzem-se, besuntem-se e chafurdem todos nele, que bem merecem!... 


sexta-feira, abril 24, 2015

Prognografia (reposição de um postal de 14 Outubro de 2006)




Lisboa, 29 de Agosto de 1963.
«Não há dúvida: os americanos evoluíram alguma coisa, mesmo muito", principia Salazar. «Há ano e meio, há dois anos, julgaram que uma pressão, uma ameaça, um ultimato nos fariam cair, ou pelo menos modificar a nossa política. Bem: já viram que não dava resultado, desistiram. E eles próprios vêem os seus interesses afectados, têm muitos problemas, não sabem como resolvê-los, e estão perplexos. E por isso nos mandam um emisário especial de alta categoria, sem que o tivéssemos solicitado. Muito bem. Mas que nos vem propor? Na conversa consigo e na que teve comigo, reparei que Ball usou repetidamente estas palavras: assegurar a presença, a influência e os interesses de Portugal em África. Ora que significa isto? Que está por detrás disto? Que conteúdo têm estas palavras? A verdade é que se Angola ou Moçambique são Portugal, este não está nem deixa de estar presente: é, está. Presença, para os americanos, quer dizer outra coisa: a língua, a cultura, alguns costumes que ficassem durante algum tempo até sermos completamente escorraçados. Isto e nada, é o mesmo. E o mesmo se quer dizer com a influência e os interesses. Com isto pretendem os americanos dizer que seriam garantidos os interesses económicos da metrópole, isto é, de algumas empresas ou grandes companhias. Mas tudo isto não vale nada. Que a economia comande a política é particularmente verdadeiro quanto a África. Bem vê: quem tem o dinheiro é que empresta, quem produz é que exporta; e quem tem dinheiro e empresta, e depois não lhe pagam, é levado a emprestar mais e mais; e para garantir esses novos empréstimos é depois levado a intervir, a controlar, a dominar as posições chave. E quem produz é que exporta; mas quando lhe não pagam as exportações, reembolsa-se com a exploração do trabalho e das matérias-primas locais. E ao fazer tudo isto é evidente que expulsa a influência e os interesses económicos de outros mais fracos, que nem podem emprestar tanto, nem exportar tanto. É o neo-colonialismo. Ora, meu caro senhor, nós não poderemos comparar a força económica e financeira da metrópole com a dos Estados Unidos. E o senhor está a ver, não está? Os americanos a oferecerem empréstimos baratos e a longo prazo; os americanos a oferecerem bolsas de estudo para formar médicos, engenheiros, técnicos nos Estados Unidos; os americanos a percorrer os territórios com a propaganda dos seus produtos. Em menos de um ano, de português não havia nada. Não, meu caro senhor, uma vez quebrados os laços políticos, ficam quebrados todos os outros. Mas então, sendo Angola parte de Portugal, não podem os americanos investir e exportar? Podem, decerto, mas têm de negociar com uma soberania responsável e com um governo que sabe exigir, ao passo que se o fizerem com um governo africano, inexperiente e fraco, sai-lhes mais barato. De resto, tudo isto está demonstrado: veja a Argélia, veja o Congo. Mas, para nós, o Ultramar não é economia, e mercado, e matérias-primas, e isso os americanos não o podem entender. Bem: este é um aspecto. Mas que quer dizer Ball com os prazos? É evidente que se os americanos estivessem dispostos a aceitar que Angola seja Portugal, não falavam de prazos. Poderiam querer discutir ou negociar connosco uma qualquer construção política ou jurídica que coubesse nos seus princípios teóricos, e depois apoiar-nos-iam sem reservas. Mas não: querem um prazo. Um prazo, para quê? E que se passa findo esse prazo? E enquanto decorre esse prazo, não acontece nada? Deixamos de existir no mundo, não se fala mais de nós? E os terroristas cessam os seus ataques? Ah! mas se os americanos podem garantir que os terroristas depõem aa armas, então é porque têm autoridade sobre os terroristas, orientam-nos, estão em contacto com eles. E os terroristas depõem as armas sem mais nada? Não exigem condições, não apresentam preço, e os americanos não assumem compromissos? Quais, como, para quando? E que promessas fazem ou fariam à Organização da Unidade Africana? E como justificaria esta o seu silêncio sobre nós e a ausência de ataques contra Portugal? Não, meu caro senhor, os americanos continuam a pensar que com jeito, docemente, conseguem anestesiar-nos e impelir-nos para um plano inclinado. (...)
Está claro que se aceitássemos o caminho dos americanos, em troca do Ultramar choveriam aqui os dólares, receberíamos umas tantas centenas de milhões. Ficaríamos para aí todos inundados de dólares e de graça. E sabe? Os que vierem depois de nós ainda haveriam de dizer: afinal era tudo tão fácil, não se percebe mesmo por que é que aqueles tipos não fizeram isto. Mas os dólares iam-se num instante, deixavam uma fábricas e e umas pontes, e depois começava a miséria. Duraria o ouro dois ou três anos. Depois era a miséria, a miséria, a dependência do estrangeiro. E em qualquer caso é-nos defeso vender o país.»

(Declarações de Salazar a Franco Nogueira)
in Franco Nogueira, "Um político confessa-se - (Diário 1960-1968)"


E o resto é paleio e paliativo para a auto-lobotomia




«Somos anti-parlamentares, anti-democratas, anti-liberais e queremos constituir um Estado corporativo. Tais afirmações são capazes de fazer tremer certos povos - e até mesmo de causar horror a alguns -, mais habituados a corrigir pelas virtudes da sua formação social is defeitos do seu sistema político, do que a vislumbrar os danos causados por essas mesmas instituições nos países que têm uma formação diferente. Mas, sinceramente, não há nisso nada de estremecer; no fim de contas, nós perseguimos os mesmos objectivos que eles, mas pela via dos processos que se adaptam melhor à nossa maneira de ser. Desejamos que o maior mérito das nossas instituições seja o de trazer a marca da sua origem portuguesa.

Um dos grandes erros do século XIX foi considerar que o parlamentarismo inglês, a democracia inglesa constituíam um regime capaz de se adaptar a todos os povos europeus. Eis aqui o resultado: a democracia parlamentar conduziu por toda a parte à instabilidade e à desordem, ou então transformou-se numa espécie de dominação absoluta dos partidos sobre a verdadeira Nação - salvo, talvez, na Suiça e em alguns países do Norte, onde condições especiais da vida e da história permitiram às instituições democráticas aclimatar-se e funcionar. Governos ditatoriais não deixaram de surgir aqui e ali, quando o mal se tornava insuportável. Restabeleciam a ordem, reorganizavam a vida, reparavam-se danos; e depois tudo recomeçava.

Em geral, as democracias do continente não fizeram pelo povo aquilo que regimes não democráticos teriam podido fazer, e não é verdade que os regimes qualificados de liberais tenham realmente salvaguardado as liberdades públicas. Nós somos anti-liberais, porque queremos garantir estas liberdades, enquanto que o liberalismo nos privou de algumas das que nós possuíamos e se mostrou incapaz de nos assegurar aquelas que teríamos podido obter. Somos anti-democratas, porque a nossa democracia, que aparentemente se apoiava no povo e pretendia representá-lo, chegou ao ponto de não se lembrar do povo a não ser no momento das eleições; ao passo que nós queremos elevar o povo, educá-lo, protegê-lo, arrancá-lo da escravidão da plutocracia. Por outro lado, imaginar, como fazem muitas vezes, que as liberdades públicas estão ligadas à democracia e ao parlamentarismo, é não ter em conta as realidades mais evidentes da vida pública e social de todos os tempos.

Que a preocupação do povo nos esteja nas entranhas e que nós sejamos os defensores da sua ascensão contínua na ordem material e moral, não implica de forma alguma, para nós, a necessidade de crer que na massa se encontra a origem do poder, e que o governo pode ser a obra da multidão e não de uma elite à qual incumbe o dever de dirigir a colectividade e de se sacrificar por ela. Querer garantir as liberdades reputadas essenciais à vida social e à dignidade humana, não implica a obrigação de considerar a liberdade como o elemento sobre o qual se deve erguer toda a construção política. O liberalismo acabou por cair no seguinte sofisma: não há liberdade contra a liberdade. Mas, em harmonia com a essência do homem e as realidades da vida, nós diremos: só não há liberdade para contrariar o interesse comum.»
- A.O. Salazar, in "Como se levanta um Estado"




Duas breves notas:
Realismo político consiste na percepção elementar de que é mais sensato e justo adaptar o sistema político à maneira de ser de um povo, do que forçar a maneira de ser dum povo aos processos procústicos dum sistema político de importação. No segundo caso, como o nosso triste e apagado presente atesta às escâncaras, nem a maneira de ser se realiza, nem o sistema funciona. A impotência existencial entretece-se na disfuncionalidade política.
Usando duma analogia de vestuário: a diferença entre o antes e o agora é a mesma que entre o fato feito no alfaiate e a roupa comprada no pronto-a-vestir. Com a agravante de o pronto-a-vestir se processar ao nível do pronto-a-pensar. Estes nossos talhantes frouxos e exo-assimilados da politiquice não passam de serventes precários à carniça picada duma qualquer cadeia McDonnalds.

quinta-feira, abril 23, 2015

Geopolítica sushi



No lendário regato da fábula milenar, um cordeiro evoluído bebia água ao lado dum lobo faminto.
Antevendo, com prognose elementar, o diálogo inconveniente, o cordeiro antecipou-se:
- "Tenho uma ideia formidável!..." - exclamou para o seu vizinho inquietante.
-"Ah, sim?  - retorquiu a fera, por entre dentes. - Sou todo ouvidos."
Animado pela resposta, o borrego avançou:
- "Proponho uma aliança. Assim, enquanto eu bebo tu proteges-me e quando tu bebes eu canto!..."
O lobo patenteou um esgar entre o sorriso e o desprezo.
-"Tem piada, ocorreu-me a mesma ideia: aliar-te a mim. Mas dispenso a música, já tenho os passarinhos para som ambiente."
E tal dito, tal feito: abocanhou o estúpido ovino e ingurgitou-o em três tempos.
Findo o banquete, murmurou, satisfeito: "pronto, agora já somos uma Aliança."

Duma colina sobranceira, o dragão, desfrutando da cena, sentado ao lado da raposa, comentou:
-"Uma aliança completa, de facto. Direi mais: uma autêntica união. Até os ossos marcharam. Mais aliado que aquilo não é possível."
-É...-  respondeu a raposa. - uma aliança interna, só vantagens. Ou  "ensopado de borrego à toino", dizem que é um pitéu de renome mundial.
-"Sim, mais pró sushi que pró gourmet, mas enfim..." - rematou o dragão.

Ao longe, por entre árvores que chilreavam, a Aliança arrotava.

quarta-feira, abril 22, 2015

Acromiomancia Revisitada -XXI. Hierarquias e hieranarquia




Em Agosto de 1974, Jaime Neves manifesta já claros sinais de que está pelos cabelos com a bandalheira instalada, sob os auspícios da inenarrável "Comissão Coordenadora do MFA".
Em 7 de Agosto ocorre o primeiro sinal de rotura. Rumoreja-se entre os MFAs uma eventual aproximação entre Neves e Spínola. O conflito latente e permanente entre os militares processava-se entre "A hierarquia formal (afecta de um modo geral a Spínola) e a Hierarquia paralela (afecta ao MFA, entenda-se a deriva esquerdóide). Daqui decorria a recorrente "contagem de espingardas" para ver quem, em dado momento, impunha o seu programa.
Assim, na reunião de 7 de Setembro, em casa de Diniz de Almeida, e sob a presidência de Otelo (entretanto promovido a brigadeiro por Spínola), acontece um diálogo muito sugestivo entre este e Jaime Neves. O relato é de Diniz de Almeida:
«Refugiando-se num legalismo demasiado ostensivo afirmava ainda Jaime Neves:
-"O meu Brigadeiro tem de me dizer se me chamou a título particular ou se me chamou a título oficial..." e vincava bem a patente de Brigadeiro, para reforçar a oportuna legalidade de que se servia para depois continuar: -É que se é a título particular, eu vou-me já embora... se é a título oficial, embora não seja o local mais conveniente... diga lá então o que tem a dizer..."
Otelo titubeou e foi embaraçado que lhe fugiu à questão:
- Bem... oh Jaime, não é bem isso. Eu aqui não sou o Brigadeiro...sou um camarada."
-"Então se não é brigadeiro, vou-me embora..." - contrariou já levantado Jaime Neves.
Escassos minutos de discussão entre Jaime Neves e Otelo decorreriam até à saída do primeiro.
Seriam porém os suficientes para que Otelo, inferiorizado, lhe desse claramente a entender que se tratava de uma reunião para "contagem de espingardas", face à iminência de uma rotura com Spínola.
Tão pouco os argumentos que Otelo usou, de que era necessário estar ao lado do seu Povo, surtiram efeito.
-"Cago no Povo!" - ripostou textualmente Jaime Neves à arenga do primeiro.» (in "Ascensão, Apogeu e Queda do MFA, pp.138)
Posteriormente, na reunião de oficiais no próprio Regimento de Comandos, Jaime Neves denuncia a reunião anterior e dá conta da sua resposta à mesma, nos seguintes termos:
- "Se a Revolução é isto, então não sei o que é o Povo... Se o Povo é apenas o MRPP que se manifesta nas ruas, então cago para o Povo... se a Revolução é isto então cago para o Povo!..."

Todavia, a heterogeneidade dos próprios oficiais "comando" era já um problema. Havia uns quantos que propendiam para a esquerda e suspiravam pelo MFA, mai-la sua santa aliança com o "povo". Chegará o tempo, já depois do 11 de Março, em pleno PREC, em que o próprio Jaime Neves, e vários outros oficiais "comando" serão saneados no próprio Regimento de Comandos. 
Entretanto, já a partir desse mesmo Agosto de 74,
«...nas unidades afectas à Comissão Coordenadora, limpavam-se as bazookas (como no Batalhão de Caçadores 5) e afinavam-se as Brownings 12.7 experimentando-as com munições perfurantes em chapa de aço análogas às das "Chaimites" (como no R.A.L. 1 , por exemplo), ao mesmo tempo que se exortavam os militares à luta, sugerindo directa ou indirectamente o Regimento de Comandos (parte dos efectivos) entre outros como adversário.» (in "Ascensão, Apogeu e Queda do MFA, pp.144)


Convém referir que, em termos  estritamente operativos, o 28 de Setembro é mais um episódio do mesmo circo que já actuara no 25 de Abril, só que pela inversa. Desta vez, quem quer dar o golpe é a "hierarquia formal" contra a "hierarquia paralela". Acontece que quando tudo estava bem encaminhado e faltava apenas um último esforço para que se consumasse a reviravolta, aos spinolistas dá-lhes para o "legalismo". Ou seja, em vez de convocarem os "Comandos", o que  era mais que evidente que faria pender duma vez por todas a balança, (e haviam até  múltiplas pressões nesse sentido),  eis que Almeida Bruno hesita e acaba por responder:
-"Otelo está aqui em Belém... nós elegemo-lo; ele é que tem que decidir! temos que confiar nele..."

Ora, Otelo não decidia nada. Por costume, naquele tipo de ocasiões, deixava-se estar muito sossegadinho. Um verdadeiro liberal avant la lettre, acreditando que a revolução, como o mercado, por acção de uma qualquer mão invisível, se resolveria e auto-regularia por si mesma. Por incrível que pareça,  naquela noite, o país esteve à distância dum telefonema para que qualquer coisa de francamente diferente do que viria a acontecer tivesse acontecido. Tão trágico e anedótico quanto isso. (É claro que depois, o Spínola do costume, toldado pelo complexo do "ocloclismo" que apanhara na Guiné, diante da maralha aos gritos, não é certo que não enfiasse novamente os burros na água - até porque Costa Gomes, como sempre, tinha um pé no burro e outro no cigano, mas, enfim, pelo menos não teria sido tão rápido...)

O facto indesmentível é que todo o percurso entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro está impregnado desse conflito omnipresente entre a hierarquia formal e a hierarquia paralela, sendo que esta, como arma fundamental da dinâmica revolucinhária, será consecutivamente explorada e manobrada sem qualquer tipo de escrúpulo ou freio..
Mas o mais curioso é que a própria hierarquia paralela, sendo alvo de tentativas paralelas da parte de forças ainda mais extremistas, devém vítima, nalguns casos emblemáticos, da mesma lógica. Ou, por assim dizer, prova do seu próprio veneno.
Um dos casos mais significativos disso acontece no RAL 1 (mais conhecido por RALIS), e dá boa nota da balbúrdia que se instalou na velha capital do último Império europeu. O caco envolve, entre outros, o oficial mais condecorado dwo exército portugês: o Alferes "Comando" Marcelino da Mata. Exporei primeiro a descrição dele sobre os factos em que foi protagonista; e, seguidamente, o relatório mais completo do enquadramento geral do evento, pela voz do 2º Comandante da unidade, palco de torturas e sevícias de vária ordem: o capitão Diniz de Almeida (aliás, Hamlet de Sacavém).

 «No dia 17 de Abril de 1975 quando me encontrava em Queluz ocidental, ouvi pela rádio ser comunicado que me encontrava preso, no RALIS. Perante tal absurdo, dirigi-me ao regimento de Comandos da Amadora, Unidade onde estava colocado, e falei com o oficial de serviço, capitão Ribeiro da Fonseca, ao qual contei o que acabara de ouvir e pedi que esclarecesse a situação.
O capitão Ribeiro da Fonseca, na minha presença, telefonou para o RALIS e falou com o Ten. Cor. Leal de Almeida, tendo o mesmo respondido que me deviam levar inediatamente escoltado àquela unidade.  Telefonou ainda o capitão Fonseca para o COPCON falando directamente para o brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, o qual confirmou que me devia entregar ao RALIS pois estavam concentradas todas as operações nesta unidade. Foi assim que escoltado por tenente "comando" e dois praças fui levado para o RALIS. Uma vez chegado à Unidade referida e enquanto o tenente que me escoltava se dirigia ao oficial de dia, aproximou-se de mim um furriel armado que me disse ter ordens para me levar para a casa da guarda e manter-me aí incomunicável. Apareceu entretanto um aspirante que me levou para uma sala do edifício do Comando onde permaneci sozinho até às 24.00.
Apareceu depois das 24.00 um indivíduo alto, forte e de cabelo e barba compridos que, intitulando-se segundo comandante dop RALIS, mas que depois vim a saber que se tratava de um militante do MRPP conhecido por "RIBEIRO", me estendeu um papel para aí eu escrever tudo o que sabia sobre o ELP.
Mais tarde apareceu um aspirante e um furriel chamado Duaarte e o capitão Quinhones Magalhães que tornaram a fazer a mesma pergunta. Uma vez que jamais tinha ligação com o ELP ou qualquer organização outra, respondi-lhe negativamente. Entrou então o capitão Quinhones Magalhães, disse-me que me ia fazer o mesmo que se fazia na Guiné aos "turras" quando não queriam falar e puxou do seu cinturão no que foi secundado pelo furriel Duarte. Saíu o capitão Quinhones e regressou acompanhado de outro indivíduo, baixo e forte, que também vim a saber ser do MRPP e conhecido por "Jorge", e mais outro furriel, aos quais o capitão Quinhones ordenou que me fossem batendo à bruta até que eu confessasse. Apareceu então o Tenente Coronel Leal de Almeida que me disse que os pretos só falavam quando levavam porrada e eram torturados e que não tinha outra solução senão ordenar que me fizessem isso.
Ordenou o Capitão Quinhones que me encostassem à parede e despisse a camisa, o que tive de fazer. Após isso, fui agredido sete vezes com uma cadeira de ferro nas costas o que me provocou vários ferimentos. Não resistindo caí, mas o capitão Quinhones disse que me pusesse de joelhos e um outro indivídupo que entrou, intitulando-se oficial de marinha agrediu-me mais duas vezes com a cadeira. Após isto, o capitão Quinhones e furriel Duarte, um de cada lado, agrediram-me com o cinturão por todo o corpo, e eu, que já sentia dores na coluna, senti dorers nas costelas e caí no chão.
O capitão Quinhones ria-se e dizia que o tenente-coronel Leal de Almeida queria que eu falasse nem que eu ficasse todo partido e que ele ia mesmo fazer-me falar.
Passados uns momentos, quando me encontrava novamente sentado, e como fizesse tenção de reagir às agressões, algemaram-me e perguntaram-me se eu conhecia uns indivíduos, os quais haviam entrado mais ou menos quando me começaram a agredir com a cadeira de ferro. Como eu dissesse que conhecia alguns deles e outros não foram-me dizendo os nomes apontando para eles e enunciaram um Coelho da Silva, um doutor Maurício, que não conhecia, o o João Vaz, Alvarenga Augusto Fernandes (Batican) e o Artur, todos africanos, os quais já conhecia da Guiné. Então o capitão Quinhones ordenou ao tal Jorge que pegasse num fio eléctrico e me torturasse, tendo-me este dado choques nos ouvidos, sexo e no nariz. pela terceira vez que me fizeram isto desmaiei, pois não aguentei.
Quando recuperei tornaram, o capitão Quinhones e o furriel Duarte, a agredir-me com os cinturões e a cadeira de ferro, sentindo eu nessa altura que devia estar com fractura da coluna e costelas e tinha vários ferimentos grandes em todo o corpo. Mais uma vez não aguentei e desmaiei.
Ao recuperar os sentidos encontrava-me todo molhado e ensanguentado, não tinha movimentos nas pernas e quase não podia respirar além de fortes dores em todo o corpo.
Por volta das 6 h do dia 18 trouxeram para junto de mim e dos outros indivíduos que estavam ali presos e já mencionados, o Fernando Figueiredo Rosa, também da Guiné, ao qual agrediram com uma cadeira de ferro e arrastaram para fora da sala. Entretanto, entrou também uma senhora que dizia ser mulher do Coelho da Silva, a qual o furriel apaplpou as nádegas e seios e outras partes do corpo, frente ao marido. Fui algemado, logo a seguir à entrada da senhora, e conduzido à prisão, onde um furriel encheu com água, até ao nível dos tornozelos, a cela.
Por volta das 23.00 fui retirado da prisão e vi i tenente fuzileiro Corte Real e o ex-tenente fuzileiro Falcão Lucas cá fora, os quais ao ver o meu estado me disseram que a eles também lhes tinham dado um "bom tratamento" mas não tanto como o meu. Fui metido, a seguir, numa Chaimite e levado para Caxias onde cheguei já pelas 1.00 ou 02.00 do dia 19/5/75. Chegado a Caxias o capitão-tenente Xavier, e o qual conhecia da Guiné, tratou-me com termos ordinários e obscenos e mandou-me levar para uma cela, apesar de ver o estado em que me encontrava e de me ter queixado e afirmado que necessitava ser assistido clinicamente. Só no dia 21/5/75, e depois de muito insistir com pedidos ao oficial de serviço, aspirante de Marinha, Fernandes, fui levado à enfermaria de Caxias onde me fizeram os primeiros tratamentos, mas quando era necessário ser radiografado faziam-no sempre às zonas do corpo que não eram aquelas de que me queixava.
Permaneci 150 dias em Caxias e só quando fui libertado e colocado com residência fixa consegui ser tratado convenientemente e soube ter tido fractura de duas costelas e de coluna.
Lisboa, 24 de Janeiro de 1976
Marcelino da Mata
Alferes "Comando"» 

Este depoimento de Marcelino da Mata, em 1976, foi prestado a Alpoim Calvão, que o registou no seu livro, do mesmo ano, intitulado "De Conakry ao MDLP". Anos mais tarde, tive oportunidade de ouvir pessoalmente, da boca do próprio Marcelino, este ignóbil episódio. Onde me confirmou em traços gerais o que atrás está exposto. Tive igualmente o desprivilégio de conhecer o tal Quinhones de Magalhães e posso certificar, sob palavra de honra, que se tratava dum canalha, dum cobarde e dum bêbado profissional. 

Entretanto, Diniz de Almeida, na altura 2º Comandante do RALIS, relata do seguinte modo os acontecimentos  que envolveram Marcelino da Mata:

«RELATO DOS INCIDENTES COM O M.R.P.P. (18MAI75)«Assumia crescente preocupação a inmfiltração do M.R.P.P dentro do quartel; detectados apenas 2 ou 3 furriéis, 2 ou 3 cabos e 1 ou 2 soldados, não conhecíamos especificamente mais infiltrações mas sabíamos existirem. (...)
Era conhecida pelo S.D.C.I a existência dum ex-fuzileiro afecto ao ELP, constituindo-se até, para o referido serviço numa pista ideal para através dele se tentar descobrir o resto da célula.(...)
Por via de uma denúncia que admito acidental, em 15 de Maio de 1975, elementos afectos ao MRPP, entre os quais se incluíam elementos do RALIS do referido grupo, tê-lo-ão detido, transportado para um local só deles conhecido e retido durante dois dias, obtendo através de um interrogatório irregular, um depoimento que mais tarde conduziria à detenção de outros elementos entre os quais o alferes "comando" Marcelino da Mata, do Regimento de Comandos.
Só muito mais tarde viria a ser, e ainda assim deficientemente, informado do sucedido.
Após haver replicado que não dava cobertura a quaisquer tipos de interrogatórios fora do quartel mandei-os apresentar o caso ao comandante a quem informei da questão tal como me havia sido relatada. Já alertyado para o problema o Cor. Leal de Almeida referiu já haver tomado as devidas providências pelo que considerei o assunto entregue a quem de direito.
Avisados o COPCON e o SDCI, não se fizeram esperar. As informasções já colhidas prometiam, ao que parecia, a pesquisa de novos elementos.
Por razões estritamente pessoais encontrava-me ausente do Regimento, gozando o meu primeiro fim-de-semana desde o 25 de Abril.(...)
Entretanto, formava-se uma multidão de MRPP's junto ao portão, aclamando os soldados do RALIS, lisonjeando-os por uma captura na qual, no fundo - com exclusão de 3 ou 4 casos pontuais e sem autorização superior - nem sequer haviam tomado parte.
O efeito da lisonja nos soldados assume por vezes efeitos catastróficos; na ocasião, porém, a situação que envolvia o ambiente geral não era de molde a fazê-los suspeitar. beneficiando da excitação produzida, dá-se simultaneamente uma penetração inicialmente imperceptível, no interior do RALIS, de soldados (ou civis) afectos ao MRPP, trajando uniforme que, sem causar alarde de início, cedo lançariam em terreno fértil a ideia de que "os presos não poderiam sair dali; ali seriam interrogados e julgados..." esta campanha de aliciamento prosseguiria ardilosamente junto dos militares presentes que entretanto apenas se davam conta de que ganhava cada vez maior volume a multidão que enfurecida rugia no exterior a condenação dos ELP's.
Ignorando o perigo interno que se avolumava, prosseguiam os interrogatórios. Contudo, a falta de condições de alojamento, a clarificação da forma como haviam sido capturados os detidos, e muito especialmente o rpincípio da percepção do logro em que se estava a cair, cedo generalizariam a nível de Comando a opinião de que o prosseguimento das investigações deveria ser em Caxias.
Na exploração de qualquer informação, constitui entretanto factor primordial de êxito a manutenção de sigilo ao longo do processo e o interrogatório teria feito surgir dois nomes: o do Cor. jaime Neves e do Cap. Salgueiro Maia.
Se os elementos em relação ao Cor. Jaime Neves provavelmente insuficientes, mereceriam contudo uma certa atenção, em relação ao Cap. Salgueiro Maia afigurar-se-iam francamente menos evidentes quanto ao seu alegado comprometimento com o golpe de 11 de Março.
Será então que um civil afecto ao MRPP, presente no RALIS na qualidade de acareado, beneficiando do clima que entretanto se havia criado e ultrapassando a situação em que se encontrava, consegue através das ligações que ali dentro, ele próprio melhor que ninguém, conhecia, fazer imprimir a "stencil", uma intencional especulação política a esse respeito, desvirtuando a realidade, sugerindo a nossa conotação com aquele Partido e provocando habilmente uma situação de conflito armado iminente entre o RALIS e a E.P.C. e o regimento de Comandos. Estavam criadas as condições desejadas por Arnaldo Matos para provocar uma grande cisão e consequentemente destruição do MFA.
A chegada de Otelo Saraiva de Carvaçlho, Carlos Fabião e Sousa e Castro, decorre praticamente neste período; ganha consistência a intenção de transferir os presos para Caxias. A notícia porém não tardará a chegar ao conhecimento da multidão que defronte do RALIS redobraria de furor.
Com o consentimento, senão a pedido, do prórpio Cor. leal de Almeida, Comandante do RALIS, Aventino Teixeira fora entretanto mandado chamar ao Regimento. Preocupado embora com a gravidade da situação, o primeiro evitava frontalizar os militantes do MRPP que entretanto cresciam diante do RALIS.
Ao segundo viria a caber assim "naturalmente", a missão de !interceder" junto dos dirigentes daquele partido de extrema-esquerda, para resolver as coisas a "bem"...
Na sequência das actividades desenvolvidas após a chegada daquele oficial superior, o Gen. Carlos Fabião não tardará entretanto a tomar conhecimento de que um soldado se aproximara junto do major Aventino Teixeira, com ar de quem era portador de mensagem importante e urgente. Teria sido mesmo ofegante que o soldado se lhe dirigira, nos seguintes termos:
"-Camarada Aventino, já contactei o nosso camarada Arnaldo Matos que está no Algarve. Ele manda dizer para aguardar pois vem já para cima...."
Esta "apartidária" troca de impressões será rapidamente confirmada junto do Gen. Carlos Fabião que após ter convocado o maj. Aventino Teixeira para que este se justificasse a este respeito, lhe escuta estupefacto a confissão acrescida de uma pseudo confabulação ideológica de que "tudo aquilo seria resultante de um contencioso ideológico entre uma pseudo linha negra chefiada por Saldanha Sanches - e uma linha vermelha - liderada por Arnaldo Matos.
(...)
Para agravar mais a situação acabara de chegar um "jeep" do RALIS com um condutor e aspirante miliciano fardados, trazendo atrás 3 civis, um dos quais a apontar um revólver aos restantes.» (in Ascensão, Apogeu e Queda do MFA, pp.121)

Penso que em termos de "hierarquia paralela" (ou melhor dizendo "hierarquias" e "hieranarquia") o leitor ficou com uma imagem fidedigna e deveras exaltante. Mas um bolo não é bolo sem a culminante cereja:
«Em 10 de Março de 75, Isabel do Carmo e Carlos Antunes, tentarão contactar Otelo no COPCON.
Na falta de Otelo, o interlocutor ideal para o seu objectivo, tanto o Cap. Tasso como o Cor. Baptista serão os inevitáveis interlocutores dos dois primeiros, que lhes pedem armas "(...) porque está eminente uma golpada do PC...".
Conhecedores desta obsessão dos dirigentes do P.R.P. habituais "conselheiros" do Comandante do COPCON (com os excelentes resultados que confirmámos em 25NOV75...), aqueles oficiais descartam-se como podem, deixando completamente desapontados tão ilustres visitantes, habituados como estavam ao acolhimento caloroso normalmente reservado a tão sólidas profecias...»  (in Ascensão, Apogeu e Queda do MFA, VOL.I,  pp.307 )
Uma última questão: quando é que sabemos que existe um conflito insanável entre a hierarquia formal e a hierarquia paralela? Quando já não existe genuína e legítima hierarquia nenhuma.